sexta-feira, 6 de março de 2015

Resgatando Dividas - Parte 2


Inteligência Privilegiada

A tão insignes predicados vinha juntar-se uma inteligência muito acima normal, talvez de gênio. Foi um autodidata completo e um inventor nato. Solado do mundo e das ciências, tudo aprendeu por si, sozinho, materializando, com mãos hábeis, tudo o que sua mente prodigiosa concebia. Desse modo, fez-se carpinteiro, pedreiro, construtor, ferreiro, artesão, mecânico, técnico de engenho, curtidor, barbeiro, alfaiate e músico, entre outras aptidões. 
Era tudo o homem, não é isso de causar espécie? 
E, aqui, fica a pergunta inevitável: que teria sido, que futuro lhe estaria reservado, se tivesse tido acesso aos livros e à moderna tecnologia? 
Torna-se difícil até de presumir. No entanto, com real certeza, teria legado seu nome à posteridade. 
Todavia, não teve, sequer, o curso primário. Escola, só na vila, o que era mesmo que não haver. Alfabetizou-se, graças a um infortúnio. Aos nove de idade, morre-lhe a mãe, passando a residir com os tios, por ser o pai portador de certa deficiência mental. Duma feita, indo à vila do Triumpho, interior de Pernambuco, despertou vivo interesse do  vigário, que,  de  tanto insistir  junto ao 
tio que o levara, conseguiu dos responsáveis permissão para criá-lo e educá-lo. Pouco durou, no entanto, a mudança. Um ano, após, o pároco veio a falecer, provocando seu retorno à Serra Branca, mas, já sabendo ler e escrever, razoavelmente. 

Primeiro casamento

Nossa família descende, pelo que pude apurar, de dois troncos frondosos, bem diferentes. Um, de característica europeia, facilmente reconhecível: pele branca clara, olhos azuis e estatura acima da média. Seriam seus representantes maiores as famílias Granjeio e Amâncio Ramalho. Fixaram-se na Serra Branca, e adjacências, com segmentos em Bananeiras/PB, e interior do Rio Grande do Norte. 
O outro genuinamente nacional, procede do Brasil Norte, no “ouvi dizer” de minha mãe. Cravou raízes no Barrocão, ali formando clã numeroso, com estilo de vida fechado e rudimentar. 
Cerca de 20 kms separam esse sítio da Serra Branca, assim chamada, porque é como parece, vista, ao longe. Da serra, propriamente, se contam histórias interessantes, capazes de aguçar a curiosidade até dos menos crédulos. Certos fenômenos, que, lá, se verificam, são reais, ainda que não devidamente esclarecidos. Minha mãe, quando morava no Barrocão, viu, várias vezes, à noite, em companhia dos seus, um objeto luminoso, no topo da serra, que o pai denominava de o carneiro de outro, por seu brilho e formato. 
Lá, estive, onde conheci o agricultor Manuel Francisco, em cuja residência me hospedei, por alguns dias. A casa distância de uns 2 kms da serra, se muito, e nela mora, (caso ainda vivia) há cerca de 30 anos. Contou-me que via, com frequência, na estação invernosa, duas esferas de fogo, no lombo da serra, cruzando-se sem se tocarem. E, às vezes, desciam à estrada, bem defronte de sua residência, em idênticas evoluções, causando-lhe grande medo e emoção. Com o repetir-se, findou por se acostumar. Não obstante, ninguém o faria aproximar-se do pé da serra, após o entardecer. Eu mesmo constatei misteriosas inscrições, em pedra, além de outras coisas, merecedoras, a meu ver, de um “estudo” paleoarqueológico. 
Mas, voltemos ao que interessa - o casamento. Tudo começou de um fato corriqueiro. Entre 1886/1887, o então rapazola João Antônio, no intuito de conhecer parentes do outro ramo genealógico, desce a serra, em demanda do Barrocão, onde conheceu as irmãs Ana e Regina, que, sem o presumir, iriam mudar-lhe o curso da vida. Ana, na altura de suas 14 primaveras, e Regina, a caçula, com seus quatro aninhos. 
Em 1888, estava casado com a primeira. Ele, na casa dos vinte anos de idade, filho de núpcias de Antônio Romualdo com Luiza Malaquias, oriundos da Serra Branca. Ela, dentro dos quinze, filha de segundas núpcias de João Malaquias com Maria Joana, todos nascidos no Barrocão. 
Dessa união surgiram doze filhos. O primeiro, nascido em 1889, teve dois meses de vida; o oitavo e o nono morreram, ao nascer; o último, de 1912, com a mãe já paralítica, durou três semanas, apenas.
Eis, a seguir, em ordem cronológica, os nomes dos que se criaram. 
1890/1944 – Maria, que se casou com João Simplício (faleceu, em Itaporanga, 
em 1984), deixou os seguintes filhos: Rosinha / João S. Filho e 
José Simplício. 
1892          – Pedro Antônio, que se casou com Deolinda, morreu em 
Pindobaçu/BA, deixando viúva e os filhos Ana / Francisco e 
Raimundo. , 
1894/1951 – Águida (Fia), que se casou com Manuel Inocêncio (falecido em 
1953), deixou os filhos Maria/Ana/Cecília/José/Losmina/Lino/Maria das Neves/Adalgisa/Natalíóa e Celina. 
1896    – Jardilina, que se casou com José Marcolino dos Santos (nascido em 
1896, faleceu, no Recife, em 15.12.1965, cuja urna funerária se acha 
no ossuário da Matriz da Boa Vista, na praça M. Pinheiro) tem vivos, afora os sete que morreram, os filhos João e Raimundo. Este, casado com Maria José Simões Santos, deu-lhe os netos Maria Eneida e Gustavo Aurélio, e da neta Maria Eneida, casada com Newton Augusto Lima, tem os bisnetos Tatiana S.S. Lima e Augusto S.S. Lima. 
1898/1984 - Filomena (Filó), viúva de José Tavares (1900/1940), deixou as sete 
filhas Eliça/Loilda/Ecila/Elizabeth/Antônia/Elite e Edite 
1901/1984 - José Antônio (Dé), casou com Maria Matias e deixou os filhos 
Tica/Misa/Doninha e Pedro. 
1904/1984 - Manuel (Nélil, que se casou com Maria Teixeira, deixando os 
filhos Gerson/Dina e Dení. 
1906 Júlio Antônio, casado com Claudina, tem os seguintes filhos: Francisco/ 
Alaíde/Maria/ João/ Alzira/ Ana Maria/ Anália e José. 

Obs.: Ao concluir estas notas, em 10/86, permanecem vivos, como se vê, Júlio 
Antônio, residindo nas mesmas moradas do Barrocão, e minha mãe Jardilina, na Av. Pedro Américo, 101, Itaporanga. 


Vida na roça

A vida na roça, por contingências naturais, era, rotineiramente, simples e operosa. Decorria toda ela no criatório, no cultivo da terra, no amanho do gado vacum e no aconchego do lar. E, só, não havia mais o que fazer. Havia-o, apenas, a esperar, a chegada do inverno, com a perspectiva de dias melhores e de uma safra promissora. O homem do campo, não tendo como fazer provisões, obrigava-se a consumir, sem apelação e sem remédio, tudo o que, tão precária e laboriosamente, pudera guardar da colheita anterior. Por isso as chuvas eram tudo para ele, salvação e vida. Eram a única fonte de subsistência, bem como causa e efeito de tudo que dava fundamento e sustentação ao seu viver. Projetos e serviços, tratos e negócios, conversas e diversões, só em função delas acontecia. 
Por tais motivos, ali, mais do que em outra parte, o homem, não só parecia, de fato, um produto exclusivo do meio, sem o menor poder de reação, preso que estava, a um determinismo ecológico inexorável. Até o amor, tem suas próprias leis, lá se mostrava diferente, não ostentando força e a mesma galhardia. Comportava-se, aclimatava-se ou então se sublimava, que, de optativo, nada mais lhe subsistia acalentar. 
Desse modo, as trovoadas, longe de ser presságio de temporal, como de se supor, afiguravam-se-Ihe trombetas do céu, anunciando um festival de música e de alegria, e desencadeando o múltiplo processo das atividades agrícolas 
Ao clarear da barra, homens e mulheres já estavam a postos. Estas, para os variados afazeres domésticos: no curral, para a ordenha das vacas e das cabras, já, de véspera, chiqueiradas; nos tabuleiros, à cata de lenha e gravetos, para alimentar as trempes; no poço Roncador, para a lavagem da roupa; nas cacimbas do rio, enchendo as cabaças, afora os pertinentes aos cuidados da casa.
A eles era “o pesado” que cabia: a desmoita, a broca, o reparo das cerca e a limpeza do terreno, para a semeação. Preparada a terra e o plantio iniciado  o quadro se invertia. De penoso e desgastante, passava a suava e prazenteiro. E, como, para a gente simples da roça, só a esperança encurta as disâncias, lá estava ela, ali, palpável, à frente de todos, em pequeninas covas, à flor da terra, afastando o tormento da incerteza. E, mal caem as primeiras águas, tudo se transforma. A natureza desperta, repentinamente, de seu longo sonho, e com pejo de sua nudez desfigurada, se veste toda, e se engalana, cobrindo-se de flores e de perfumes. E eles, sem mais lembranças das canseiras e sofrimentos, riem todos, a valer, despreocupados e felizes, como crianças estimuladas. 
A aparente singeleza do quadro finda por nos levar a uma inquietante reflexão: ver uns, que de tudo precisam, com tão pouco se fartando; outros, que  nada carecem, nem com o excesso se bastando!... 
Mas, outras águas, que não as do céu, caíam, e com mais fertilidade, regando, generosamente, a terra semeada. Eram as vertidas daqueles corpos rústicos feito gotas, que, resvalando até o chão, nele se entranhavam sem demora porque tinham pressa de fecundação. Diferiam umas e outras, apenas, nas origens. As do alto, dádivas puras, e as de cá, frutos não simulados de holocausto humano. Mas, tendo ambas um mesmo fim sublime, integravam-se, sem esforço, perdendo, aí, as singularidades. 
Plantavam com extrema fadiga e suor, para colher com alegria, no dizer Livro Santo. 
O pôr-do-sol era o sinal de fim de jornada e de restauração das energias gastas. A mesa estava posta. Servida a ceia e ordenados os teréns da cozinha, todos se reuniam, na varanda, em volta do “pater famílias”, para a leitura dos textos bíblicos. Em seguida, meu avô como que se transformava em outro. Despindo-se de seu natural autoritarismo, colocava os menores ao colo e dava vez a todos, para as brincadeiras e as conversas informais. E chegada a hora do recolher, faziam-se as preces comunitárias, acrescidas de outras, em tom de saudações: a bênção, meu pai, a bênção, minha mãe - Deus te abençoi, meu filho.
No dia seguinte, era a mesma coisa, quase tudo se repetindo, às mesmas horas. Homens, mulheres e crianças indo e vindo, nas mesmas direções, num vai-e-vem contínuo e operoso, à semelhança de formigas. Alguém diria monótono e enfadonho um tal sistema de viver. Nada mais falso. A pureza de vida interior e o trabalho intermitente não davam margens a tristezas, apatias, depressões ou a rostos contrafeitos. De resto, não havia ocasião nem lugar para o eclodir de paixões violentas, porque seu fragor não Ihes penetrara, ainda, os corações. Cada um vivia em perfeita paz, consigo mesmo, com os outros e com a natureza. Afinal, as necessidades básicas eram atendidas, quase nada afetando os anseios, em demasia limitados. E, facilitando o “rnodus vivendi”, homem e terra se entendiam e se completavam, com mútuas e proveitosas doações. Ele, oferecendo-se, com o que tinha e com o que podia - muito suor e cuidados. E ela, devolvendo-lhe, em frutos, o que dele recebia, propiciava o indispensável equilíbrio à manutenção de tão benéfica harmonia. E, com isso, dava-se ele por satisfeito. A não poder ser feliz, contentava-se, numa atitude, de veras, sábia e realista. Que a felicidade, cá, na Terra, já ninguém o desconhece, é pura miragem, foge-nos, tanto mais de repente, quanto mais depressa dela nos acercamos. E, para maior desgraça nossa, quando se vai, não se vai, de todo, deixa-nos, ainda, de contrapeso, uma substituta cruel e indesejável - a dolorosa frustração do vazio!  
Perdôem-me a excursão despropositada. 
O Barrocão era um mundo diferente, onde o inverossímil fez morada. O verdadeiro e o fictício pareciam coexistir, tranquilamente, como se partes de uma homogeneidade. Lá, o real e o irreal caminhavam juntos, de mãos dadas, numa parceria quase intencional de querer confundir o própria Lógica, tornando-a, desautorizada. Senão, vejamos um pouco.  
No que se refere ao sossego dos lares, não havia o que temer. Naquele ambiente, a ordem, a segurança e a moralidade eram totais. E não poderia ser de outra maneira, uma vez viverem as pessoas mergulhadas, o tempo todo, em paz intensa e duradoura. E as fisionomias, falando por si mesmas, o atestavam. De tão serenas e imperturbáveis, eram o reflexo natural dessa calmaria e formal desmentido à existência de quaisquer conflitos interiores. E como imaginar desordem e agitação onde não vicejava a inveja, a mentira, o ciúme, a maledicência, o roubo e o crime? Dir-me-ão, no mínimo, que estou sendo temerário, com tais afirmações, não é o homem o mesmo, em toda parte? Reconheço-o e confesso. Mas, não tenho escapatória, por ficar rendido ao testemunho de minha mãe que, sabidamente, nunca teve pacto com a mentira, e cuja memória e lucidez a tornam consistente e merecedor de fé. Se ocorreu algum daqueles desregramentos, não foi ela sabedora, e nem pessoa da família, que nenhum motivo e condições teriam de esconder fatos tão irresistentes à curiosidade humana. No entanto, para não cair na insensatez e na utopia, podemos presumir que houvesse, quando nada, nos corações, acolhida a tais sentimentos e fraquezas. Se os houve, com toda certeza que resta subcentes, por não poderem aflorar, à mingua de toda luz e calor. Essa a presunção mais aceitável, pelo menos enquanto meus avós viveram, porque, ali, eles, era incrível como o Demônio tinha rédeas curtas!
E a inocência, como andava ela, por lá? O que descobri, nesse sentido, notadamente, entre as mulheres, é algo de estarrecer. Minha mãe conta o impacto causado por uma prima que, às escondidas Ihes falara de namoro. A casa quase ruiu, ante a explicação, pois, não sabiam o que fosse, a começar pela palavra. E isso era nada, ao que se segue. Ela assevera - agora, já sob juramento - que ignorava, como todas as irmãs, o que era e como se dava a procriação. Pensavam, candidamente, que a vida de casado era a mesma de solteiro, com a única diferença da cohabitação. Bastava o padre casar os nubentes, que os filhos brotariam, automaticamente, sacramentalmente, sem qualquer cooperação paterna!... 
Convém enfatizar que não estou romanceando, nem percorrendo caminhos de ficção, e, sim, me atendo, tanto quanto posso, ao que me foi revelado pela fonte inquirida. De igual modo que o leitor, sinto-me espantado, frente a coisas tão insólitas e surpreendentes. Contudo, apreciando-as, com mais vagar, à luz das circunstâncias, minha incredulidade se dilui. A vida já é, em si, um tremendo mistério, corno tudo mais que a envolve. De que modo, então, se ousar negar, liminarmente, fatos discutíveis, sob o mero argumento de não parecerem possíveis? Porventura, não, já, é isso, grande imprudência e presunção maior? E foi, exatamente, por assim se afigurarem, incríveis, que me aventurei ao desafio de sua divulgação. Ao menos por esse motivo, seja eu perdoado, é o quanto peço. 
Meu avô tinha uma casa na rua (ainda, hoje, é assim que se diz, por lá, quando se quer referir à cidade) que, normalmente, só duas vezes, ao ano, abrigava a família - pelo Natal e na Semana Santa. Para as moças, eram os únicos contactos com a civilização e, quase só, visuais, ante a constante vigilância paterna. As outras festas religiosas - S. José, Mês de Maio, S. João e S. Pedro - eram comemoradas, intensamente, no recinto do lar. De todas, pela pompa, beleza e devoção, sobressaía-se a do Mês de Maria. Meu avô fazia um altar de madeira, na largura da sala, encimado por um arco, todo coberto de pano e recoberto de flores. Na véspera de abertura das festividades, atava-se a bandeira azul e branca à ponta do mastro, deitando-o sobre os ombros de dois adultos, com uma criança sentada, ao meio. Formava-se a fila, atrás, e, ao entoar de benditos, davam três voltas, ao redor da casa, para fincá-Ia, depois, no meio do terreiro. Soltados os fogos, iam todos se comprimir, no interior da saIa, onde o Oratório, cheio de santos, no centro de um altar repleto de flores, de velas e de castiçais, era o ponto de convergência obrigatório dos olhares e atenções. E não fosse por falta de protetores que se deixasse de rezar. Havia­os para todos os gostos e devoções. 

Avizinhando o momento, por todos percebido, enchia-se a sala de um silêncio profundo e espontâneo. Incontinenti, lado a lado, meus avós dirigiam-se ao altar e abriam o Santuário, colocando imagens à frente das duas portinholas, guarnecendo-as, tendo, ao fundo, a Imagem do Senhor. Voltados a seus lugares, meu avô iniciava o culto, com atos de meditação, intercalados de cânticos. Em seguida, recitava-se o terço e cantava-se a Ladainha, pondo fim às solenidades. 
No último dia do mês, e com o mesmo ritual de abertura, meus avós fechavam o Oratório, ao som do bendito de encerramento: Fechemos as portas/para guardar Jesus/ com os braços abertos/ cravados na Cruz/Adoremos a Jesus/ veneremos a Santa Cruz. 
Uma gande fogueira a todos aguardava, no terreiro, para a queima dos fogos e o milho assado e, a cujos pés, jovens e adultos se tomavam por padrinhos e afilhados. 

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