Segundo casamento
No início de 1912, morre minha avó, de paralisia, e é enterrada no cemitério de S. Boaventura. Devia estar com a idade de quarenta anos, se se tomar 1872 como data de seu nascimento, como tudo leva a crer. Nem meu avô e nem qualquer filho teve ânimo de seguir o enterro, pelo que ficou desconhecido, totalmente, o local da sepultura.
Sobre esta avó, tenho de relatar alguns pormenores de sua vida, por serem de extrema beleza. Se meu avô era um justo, Ana, sua mulher, era uma santa. Não no sentido vulgar da palavra, mas, em toda sua real significação cristã. O que soube, a seu respeito, me conduz a esse convencimento.
Ainda criança e órfã, assumiu, com zelo e dedicação admiráveis, os encargos domésticos, a criação e educação dos irmãos menores Francisco, Luiz e Regina, afora os cuidados com o próprio pai. Como esposa, foi exemplar e inigualável. O amor e respeito devotados ao marido, impressionavam, mais parecia veneração. Durante as reuniões familiares, ela sentava-se a seu lado, sem lhe despegar os olhos, toda ouvidos, numa expressão fisionômica de indisfarçável encantamento. E, como mãe, não se pode definir, foi grande, demais. A educação, moral e religiosa, ministrada aos filhos, chega ao sublime, tais a beleza e profundidade de que se revestia. Infundiu, em suas mentes e corações, o mais acentuado espírito de obediência e as mais tocantes lições de amor ao próximo. Ensinou-os a respeitarem, de tal modo, os mais velhos, que a todos tomavam a bênção, chamando-os, carinhosamente, de tios, não importando a cor da pele, o sexo ou a situação econômica. Quando, por alguma trela, “apanhavam”, recebiam, além do castigo merecido, uma penitência a cumprir, em orações, à moda do confessionário. Todas as vezes que ia visitar um enfermo, levava as filhas, e, a certa distância da casa, pondo-se ao abrigo de olhares indiscretos, caíam juntas, de joelhos, no chão limpo, a rezar pelo doente. Diz, ainda, minha mãe que, à tardinha, ela desaparecia, como por encanto, sem que ninguém o percebesse. Dada a falta - que, de começo, era o alarma – iniclava-se a busca, dando-se com ela, por fim, no meio das moitas, absorta, em oração, no mais profundo e comovedor recolhimento espiritual.
Passo a não entender como uma criatura, inteiramente ignorante, sem guia e sem instrução, possa ter atingido a tais alturas de perfeição cristã. Por tudo que soube de sua vida, ouso afirmar, sem receio, que não chegou a conhecer o pecado mortal, tendo morrido, como tudo indica, em verdadeiro estado de graça.
A viuvez tornou-se insuportável e insustentável, para meu avô. Com uma casa cheia de filhos e a cabeça já não tão firme, fazia-se preciso devolverlhe a tranquilidade d’alma. Vivia a maior parte do tempo, recolhido ao quarto, em pesado desconsolo e prostração. E só uma pessoa poderia tirá-lo desse estado, a cunhada Regina, ou Vicença, como a chamava. Só ela reunia as qualidades e condições requeridas e a situação aconselhava, e com uma enorme vantagem: os sobrinhos a queriam, muitíssimo, tendo-a, já, como segunda mãe. O difícil foi convencê-Ia. Até o vigário, para quem apelaram, foi posto no meio das dificuldades. Finalmente, removidas, nos fins do mesmo ano de 1912 estavam casados. Ela, também viúva, de casamento com João Marcolino, portava um filho menor, José, meu futuro pai.
Foi outra união feliz, que durou até 1919, quando ele morreu, de complicações cardíacas, em sua casa do Barrocão, ainda existente. Estava dentro dos cinquenta anos, ao se aceitar 1869 como data de seu nascimento. Sepultaram-no junto ao major Serafim, seu grande amigo, no cemitério velho, destruído, posteriormente, para dar lugar às atuais ruas paralelas S. José e S. Antônio, ao lado poente da matriz.
Desse enlace, só houve um filho, Lucas Antônio dos Santos, nascido em
1915, que se casou com Dulcinéia Braga. Faleceu em 21.09.85, e foi enterrado na mesma cova do irmão Néli, no cemitério de Itaporanga, onde exercia as funções de Oficial de Justiça. Deixou viúva e os seguintes filhos: Maria de Lourdes / José A. Neto / Maria do Socorro / Maria Marluce / João A. Neto / Josefa Maria / Ana Maria / Maria de Fátima / Manoel L. Antônio / Jocélio Antônio / Francisco Antonio e Lucas Antônio S.Filho.
A Favela
Em 1923, quatro anos após a morte do segundo marido, minha avó Regina considera cumprida sua missão, junto aos sobrinhos enteados. Já adultos, não careciam tanto de sua assistência como o filho José, casado com minha mãe, desde 1914. Naquele ano, ele comprara a propriedade Favela, a 3 kms de Misericórdia, e ela julgou de seu dever ficar a seu lado.
Um fato inédito e pitoresco
Nem bem tinham chegado da mudança, e eis que surge, de repente, um fato eventual, pondo em risco o ótimo relacionamento entre nora e sogra, pelos vexames causados. O contratempo partia da circunstância de terem de morar sob um mesmo teto, coisa que não acontecera, anteriormente. E só uma dona de casa do meio rural saber da importância de um pai-de-terreiro, para sua criação de galinhas. E, por uma e outra trazer o seu, inadvertidamente, é que se gerou toda a celeuma. Nunca se ouviu falar de um terreiro com dois galos, fatalmente que o mais forte daria cabo do mais fraco, pela lei cruenta da natureza.
O caso, isoladamente, nada de grave oferecia, e, de especial, apenas a hilariante balbúrdia que se formara. O que, paradoxalmente, o tornava sério e doloroso, era, uni-Ias, a intensa e recíproca amizade. Cada qual abdicaria, prazeirosamente, de seu direito, para contornar a situação. Porém, justamente, aí, é onde residia a dificuldade. Nenhuma queria ser a contemplada, por temer vislumbrar, na outra, o menor resquício de mágoa e, com isso, minar uma afeição que jamais sofrera abalos. E, agora, um simples galináceo estava a ponto de realizar uma tão inacreditável proeza.
O impasse estava criado, e, à falta de uma saída honrosa, que a arribas contentasse, já assumia feição inquietante, porque o mal-estar, de tão sofreado, dava mostras de não mais ser contido.-
Por fim, uma luz brilhou, naquela escuridão, desanuviando mentes e corações. Decidiriam, ainda que a contra-gosto, à moda do Rei Salomão, conferindo aos próprios contendores, a decisão de caso tão intrincado. A sentença, como se vê, final e irrecorrível, já era, antecipadamente, conhecida.
E o fizeram, sem delongas, porque a aflição, que já reinava absoluta, tomara a si esticar, por conta própria, a enervante espera do desfecho.
Com imenso pesar, colocaram os galos no terreiro, frente a frente, a ver, suspensas pela emoção, a qual dees caberia trono tão cobiçado e enturoso.
E o que de menos se esperava, aconteceu. Entreolharam-se, reciprocamente, cada um de seu lugar, impassíveis, inertes, sem ação, na mais vergonhosa das covardias, ou, então, no mais convincente ensaio democrático. Não se sabe. O que resultou foi, tão só, o que se viu - o respeito mútuo, numa estranha e pacífica aceitação de convivência forçada. Certamente, ao compreenderem que cada qual teria sua vez, optaram, ajuizadamente, pelo que, em tais circunstâncias, Ihes pareceu de melhor alvitre. Mais valia, afinal, repartir, depois, lucros certos, que correr, em tal instante, riscos presentes e duvidosos. E, assim, o terreiro ficou mesmo com os dois galos; para espanto de todos.
Esse fato, verídico e original, foi motivo de comentários, e muito deu o que falar, na redondeza.
Porém, decorrido um tempo razoável, e quando mais desenvolvido estava o criatório, algo de imprevisto voltou a acontecer. Os rivais passaram a se estranhar, de modo definitivo, e o pacto, ou coisa que o valha, foi por terra. E com as rinhas constantes e violentas, não demorou muito e um deles foi definhando, até morrer.
Tem toda razão o adágio popular: não há bem que sempre dure...
Nessa Favela vim ao mundo, em 1925, tendo por berço um quartinho escuro, de fundo, dando para os lados Norte/Oeste, de uma velha casa de taipa. Foi, aí, onde passamos os melhores anos de nossas vidas. Mesmo depois da mudança, para a rua, nâo me afastava de lá, visto minha avó não nos ter acompanhado, permanecendo, na casa, heróica e teimosamente, sozinha. O filho Lucas, de 15 anos, seduzido pela vida, morava mais conosco que com ela.
Desta avó paterna posso dar meu testemunho pessoal, pela longa convivência que tivemos. Era de fácil comunicação, enérgica, e de um edificante espírito de caridade. Suas portas nunca se fecharam a um pedido de ajuda. Sem que lhe fosse solicitado, costurava de graça, para os necessitados; deu moradia sem paga, a desvalidos, e trouxe crianças pobres para dentro de casa, criando-as, até a idade de adultas.
Com o mesmo brilho e fervor do Barrocão, implantou o culto do Mês Mariano, ponto alto de sua devoção à Virgem Santíssima. Nossa casa, normalmente frequentada, não cabia de gente, nessas ocasiões. Pessoas de todas as idades, condições e procedências, a ela acorriam, numa magnífica demonstração de Fé, associada a uma bela mistura de calor humano. Foram tempos memoráveis, vividos sob o influxo da paz, da alegria e do trabalho, no meio de uma abençoada fartura. Como símbolo e testemunho, lá está, restando nossa velha casa, sólida e imponente, à beira de ser centenária. Juntamente com mais 5 hectares de terra, é tudo que nos sobra da antiga fazenda. Do alto de sua dominação, pode-se divisar, um pouco além, num quadro de real beleza, a progressista Itaporanga de hoje, e, logo abaixo, o imprevisível Piancó. Por algumas vezes, manso e embalando sonhos; por outras, impetuoso, medonho, espumando de raiva e destruidor, esquecido, talvez, de que não era esta sua missão.
Não podendo, por mais tempo, permanecer em situação tão incômoda - ela na Favela, sozinha, e nós outros,• na rua - resolveu, por fim. em 1940, juntar-se a nós, em definitivo.
Estou, ainda, a vê-Ia, nas peregrinações que fazíamos, com a Imagem da Padroeira, pelos sítios e capelas, angariando donativos para as obras da matriz, em companhia do saudosismo pe Nicolau Leite, instrumento nas mãos de
Deus, e a quem jamais poderia agradecer, por tudo que de bom representou, em meu encaminhamento na vida.
Aos 67 anos, acometida de cardiopatia, veio a falecer, após uma vida to da voltada para o Evangelho. O desenlace se deu no mesmo dia do aniversário do filho José, meu pai, a 9 de janeiro de 1948. Está sepultada, no cemitério local, em jazigo da família, à espera dos seus, para o dia glorioso da Ressurreição!
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