terça-feira, 10 de março de 2015

VENTOS DA REVOLUÇÃO


Meu pai estava ultimando a construção de uma casa na vila, na Rua do Tostão, para onde iríamos nos transferir, apressadamente, que o tempo não era de espera. Por motivos políticos, a Paraíba rompera com o Governo da Federação, passando a compor, com Minas e o Rio G. do Sul, a Aliança Liberal. Esse gesto, impulsivo e temerário, dada a gritante disparidade de forças, afigurava-se, apenas, simbólico, mais de romântica altivez, que, de outra forma, não se poderia conceber afoiteza tamanha. Carecendo das mínimas condições e não medindo as consequências, ousou, em excesso, para um tão desigual enfrentamento. Nem, sequer, dispondo dos recursos essenciais para gerir as próprias necessidades, eis, que, de súbito e imprevidentemente, se via a braços com questões outras, maiores e gravíssimas, a exigir avultadas somas de seu já exaurido tesouro. E, com uma agravante. Sendo o único Estado de todo Norte/Nordeste a se rebelar, pusera-se, com isso, em situação mais incômoda e vexatória, ao não poder contar com seus tradicionais amigos vizinhos. 

Debatendo-se, assim, sozinha, no meio de fatores tão adversos, a pequenina Paraíba estava, de fato, entregue à própria sorte, e ansiando a salvação, por um milagre. . 
Nada disso pesou, no entanto, em sua heroica decisão. Mais faria, se preciso fosse, para salvar os brios de sua gente, E, sem titubear, aceitou, de bom grado, o desafio. 

Não obstante, pior que a repressão do Governo Central, negando-lhe créditos e liberação de verbas, e estrangulando-lhe os meios de abastecimento, com o bloqueio do Porto de Cabedelo e do sistema ferroviário, foi a surpreendente insurreição de José Pereira, homem de inegáveis predicados morais e de grande prestígio no sertão paraibano. Apoiado, ostensivamente, por Washington Luiz, João Suassuna e os Pessoa de Queiroz, afora as muitas amizades, nos Estados vizinhos, tornara-se desafiador o valoroso caudilho de Princesa. E, perspicaz, vira chegada a hora, mais do que oportuna, de tirar suas conhecidas “diferenças” com o Presidente João Pessoa, precisamente, quando mais flagrante era o desaparelhamento do corpo policial do Estado, e, bem reduzido, seu efetivo. Estava, pois, a bem dizer, como queria, espreitando, apenas, a ocasião, para se lançar numa aventura, de todo modo, arriscada, mas, calculada, e de cujo sucesso já não podia duvidar. E, no antegozo das vitórias, bem que lhe cairia à fruição de regalo maior, com que jamais sonhara: tirar-lhe, da Frente, o grande rival e único atrapalho à conquista do poder - João Pessoa. 

Se, deslumbrado, abriu as portas à ilusão, nunca se soube. Verdade é que, se o fez, avançou em demasia, já não lhe podendo escapar aos efeitos envolventes, seduzido, que estava, pela glória. E, ao sentir a brisa do triunfo perpassar, em doce embalo, para assomar-lhe, depois, à cabeça, avassaladora e, aí, se aninhar, já tinha o entendimento enfraquecido e, minada, toda a resistência. Aquiesceu, tão só, uma vez não ser o mesmo homem. E, sim, um outro, à vista das suposições, alterado e movendo-se, pelas circunstâncias. 

Contudo, não seria sem certa dose de razão que se pudesse dar ao devaneio. Em situação privilegiada, com as cartas nas mãos, que lhe custaria alimentá-lo, mormente, vendo-o tão perto e factível? 

Sem perder tempo, e às escondidas, como convinha, fez-se às armas, soltando suas hostes, pelo interior do Estado, numa ação rápida e coordenada, desarticulando e submetendo as forças legalistas. 

Apanhada, em descuido, a Paraíba curvou-se, momentaneamente, ao poderio do inimigo, e, por pouco, não se viu prisioneira de mãos sanguinárias. 
Essas derrotas iniciais caíram fundo, na opinião pública, comprometendo a capacidade defensiva do Governo. 

ExuItou de alegria o astucioso chefe rebelde; ao ver confirmados seus prognósticos. Mas, não ficou, aí. Vibração maior o aguardava, abrindo-lhe as portas da fama. Foi quando se viu alçado às manchetes, numa destacada projeção de sua figura provinciana, no cenário político nacional. Tornou-se assunto obrigatório, e, ficando tão conhecido, quanto temido, por certo tempo, virou mito. 

Porém, como se viu, sonhando alto, muito alto já subira, e, pelo pouco que tinha, muito, ainda, lhe faltava. Que se contentasse, pois, com a glória efêmera que tivera, porque a Paraíba tinha, a governá-la, homens de estirpe maior, e, a defender•lhe a honra, a bravura confirmada de um povo nascido e criado de sangue e com seiva de heróis! 
Dois fatores respondiam pelos insucessos das tropas do Governo, afora seu contingente reduzido e desmuniciado. Um, a precariedade dos serviços de comunicação; o outro, a ausência física da Autoridade do teatro das operações. O Comando Geral estava sediado em Nova Olinda, é verdade, mas o Poder Civil permanecia a cerca de 400 kms do centro geográfico dos combates, dificultando, sobremaneira, a eficácia das providências, e o mais que se impunha: o manejo rápido e flexível das tropas. 

A Mudança repentina


Na vila de Misericórdia, em dimensão menor, a situação espalhava, em tudo, o que se passava nas restantes localidades do Estado. Era o retrato fiel da incerteza, da confusão e do desconhecimento dos fatos. Tal circunstância deixava aquele aglomerado humano à mercê de boatos e de notícias as mais desencontradas e alarmantes. E uma delas circulou, como faísca, correndo célere, de boca em boca, anunciando o que tanto se temia, o cerco do povoado. Era iminente, dizia-se, questão de horas, talvez. Os revoltosos para lá se encaminhavam. 

Foi sob esse impacto, que se fez a mudança, por etapas, açodada e desordenadamente. Avistadas, ao longo da estrada, as primeiras levas de cangaceiros, (recebiam, também, esse nome meu pai, com os dois filhos maiores e o irmão Lucas, embrenhou-se, mato adentro, empurrado por minha mãe, dizendo-lhe nada temesse, quanto aos outros, que saberia safar-se das dificuldades. Não sei mesmo em que se fiou, para decisão tão arrojada. Felizmente, que tudo correu bem, sem ameaças A nossa integridade. Paravam, em nossa casa, apenas o necessário, para matar a sede devorante, seguindo caminho, depois. 

Lá, pelas tantas, quando menos esperávamos, estacionou, à porta de casa, um lindo Ford 29 preto, com a missão de nos levar para a rua. Viera a mando de meu padrinho de batismo, o farmacêutico Augusto Nunes, e conduzido pelo filho José Nunes e Luizinho, irmão de Dona Salomé Pedrosa. 

Minha mãe relutou, o quanto pode, em tornar assento no carro sem a sogra. Esta não queria ir conosco, pedindo tempo, para poder deixar a casa em ordem. Que fôssemos, na frente, que iria, depois. Minha mãe não concordava, pela delicadeza do momento. Todavia; ante a firmeza de sua decisão, não nos restou alternativa, e, mesmo a contra-gosto, tivemos de ,entrar no automóvel, que saiu adoidado, sacolejando em disparada, sem ao menos sentirmos os catabis, porque nossos corações pulavam mais.  

Alguns minutos, e estávamos em frente da nova residência. Só deu mesmo para subir o batente. Fechou-se o tempo, e uma saraivada de balas nos saudou, num gesto inusitado e nada amistoso de boas-vindas. Graças a Deus, que a casa era bem coberta e segura. Extendemo-nos, no chão limpo atijolado, minha mãe e eu, e assim ficamos, imóveis, com meu coração de cinco anos batendo fora de ritmo. Um dos piquetes de defesa, a vomitar fogo, por sobre nossas cabeças, ficava na torre da matriz velha, coisa de 150 metros de onde estávamos. 

Foi um tiroteio intenso, mas, de poucas horas, e sem vítimas fatais, graças ao aparecimento de um avião legalista que, de maneira singular, pôs fim à luta, sem que dele partisse um só tiro. Era a primeira vez que nos visitava, e sua simples presença foi o bastante para levar o medo e o pânico a todos, indistintamente, e de modo particular, aos sitiantes, por se acharem mais expostos, a descoberto. A debandada foi geral, de parte a parte, numa correria louca, a esmo, sem direções escolhidas, à procura de esconderijos, nas casas, nos matos e nos serrotes. Não fosse a ocorrência de algumas mortes, por colapso, causado pelo pavor, o episódio teria se revestido de pura comicidade, ao esvaziar-se o campo da luta. 

Maior, no entanto, que o medo da morte, que nos rondava, era a angústia pelo destino dos familiares. Meu pai, com meus irmãos, em lugar incerto, e minha avó, sozinha, retida na Favela. Estariam vivos, ou mortos? A incerteza nos torturava. Foi só ao amanhecer, com a chegada de meu pai, que o sofrimento minorou. Ao não encontrar a mãe conosco, volta, porém, em cima dos pés, em sua busca, esgueirando-se, pelo leito do rio. Achando-se, em paz, sossegou. Mas, não houve rogos que a convencessem a vir para nossa companhia. Entendendo que lá era seu lugar, ficou. 

A vinda do Dr. José Américo, Secretário de Segurança e Coordenador Geral da Campanha, para Piancó, onde instalou seu Comando, foi fator de suma importância na alteração do panorama bélico. Essa decisão, nas circunstâncias, foi de rara clarividência, pelo que dela resultou. Parece que sua avançada miopia exterior dera-lhe uma maior visão interior. De imediato, sua presença, entre outras vantagens, serviu para conter as funestas deserções, e dar moral, disciplina e alento às tropas. E José Pereira, que, até então, só experimentara o sabor delicioso das vitórias, começou a sorver o fel amargo das derrotas. Registraram-se os primeiros tremores, nos alicerces do “Território livre de Princesa”. Aos feitos menores de Misericórdia, S. Boaventura, Manguenza, Sítio e Cajueiro, vieram somar-se as contundentes derrotas de Tavares e Alagoa Nova, seus dois maiores redutos, depois de Princesa. Abateu-se o ânimo dos revoltosos, surgindo, aí, as primeiras fugas, como relata José Amrico, em O Ano do Nego. 

Estava, nesse pé, a situação, quando a catástrofe se deu. Assassinaram João Pessoa, no Recife, dentro da Confeitaria Glória, diziam as notícias. Seu autor, o bacharel João Duarte Dantas, O calendário marcava 26 de julho de 1930. 

A Paraíba contraiu-se de dor, e gemeu alto sua desdita. Não, não era possível. Foi tudo o que se ouviu, numa dolorosa obstinação em assimilar a realidade. 

O Que foi essa tragédia e o que a ela se seguiu não cabe em registro. 

Unicamente quem a viveu pode dar-lhe avaliação. Na história paraibana, e quiçá, brasileira, não se conhece comoção igual. Esse crime, extemporâneo e um tanto equivocado, sacudiu e convulsionou o Estado, de ponta a ponta, fazendo desaguar na alma coletiva todas as mágoas e frustrações que a dor não conseguira reprimir. Tocadas por: um frenesi, as pessoas foram se juntando, em grupo, aturdidas e desatinadas, engrossando, em multidões ameaçadoras, até caírem, depois, num desvairamento geral perigosíssimo, que transformou por completo, a fisionomia da pacata capital paraibana. Impossível descrever, então, as cenas horríveis que se verificaram, com o quebra-quebra, os incêndios e as depredações. Foi coisa nunca vista. Com a chegada do esquife, no dia 28, vindo do Recife, em trem especial, os ânimos serenaram, um pouco, com todos querendo ver o corpo inanimado de seu herói. Mas, a comoção atingiu, aí, seu paroxismo. Deixemos falar quem mais capacitado, por ter sido figura central dos sangrentos acontecimentos, e vivido toda a intensidade da tragédia - José Américo de Almeida, em seu livro já citado. 

“Quando o trem apitou, dando sinal de partida; o povo se deu ao desespero. Quem nunca viu uma multidão em peso, chorando, num choro alto, quem nunca assistiu na vida a um quadro semelhante, não pode, nem de longe, avaliar o que foi isso. Era um pranto enorme. E eu de cara limpa e uma agonia por dentro, sentindo o vácuo. 

Os músicos sopravam seus instrumentos e o que saia era um choro desafinado. 

Não estou exagerando. Tenho horror ao exagero. Cem anos que eu viva nunca me esquecerei dessa cena. Nunca vi tanta dor. 

Passado o pesadelo do adeus, com a ida do féretro, de navio, para o Rio de Janeiro, a Paraíba uniu-se, de todo, numa corrente de civismo, sem paralelo, em sua história, captado e condensado num hino de grande beleza e inspiração. Do litoral aos confins do sertão, não se cantava outra coisa: 

Lá do Norte um herói altaneiro 
Que da Pátria o amor conquistou 
Foi um vivo farol que ligeiro 
Acendeu e depois se apagou 

Estribilho 

João Pessoa, João Pessoa, 
Bravo filho do sertão 
Toda a Pátria espera um dia 
A tua ressurreição 
João Pessoa, João Pessoa 
O teu vulto varonil 
Vive ainda, vive ainda 
No coração do Brasil. 

Paraíba, ó rincão pequenino 
Como grande este homem te fez 
Hoje em ti cabe todo destino 
Todo orgulho da nossa altivez 

Estribilho 

João Pessoa, João Pessoa,... 
Como um cedro que tomba na mata 
Com um raio que em cheio o feriu 
Assim ele ante a fúria insensata 
De um feroz inimigo caiu. 

Estribilho 
João Pessoa, João Pessoa,... 

Depois disso, não havia como falar em vitória dos rebeldes. Só um louco o faria. Já respiravam derrota, sem que fossem guerreados. 

Contudo, sob proteção de contingentes do Exército, e não se atrevendo a por a cabeça de fora, o valoroso José Pereira homiziou-se em seu fortim de Princesa, com as forças remanescentes, na vã tentativa de esboçar uma resistência que já não convencia, por inútil. 

Usando de igual artimanha à do adversário - a surpresa - José Américo fez despachar 300 homens escolhidos, sob as ordens do capitão Emerson Benjamin, para o assédio final. 
Não esperava por essa o irrequieto chefe rebelde. 

Caindo, de chofre, sobre os amotinados, os legalistas subtraíram-Ihes o menor ensejo de reação, aniquilando-os, com o ataque fulminante. 

Perdida a última batalha, e a causa, com a vitória da Revolução, José Pereira fugiu, passando, segundo consta, a levar vida errante, por vários Estados, mas, cheio de dignidade, até sua morte natural. 

Quanto à Aliança Liberal, que vivia de adiar, continuamente, a data e à hora de pegar em armas, encontrou, de repente, no sacrifício de seu líder, aquilo de que tanto precisava, para sensibilizar e levantar as massas: a bandeira e a pólvora. 

A Grande Dor

De, aproximadamente, ano e meio foi nossa permanência no nº. 88 da Rua do Tostão, atualmente Prof. Alencar. Mais não foi possível. Um acontecimento, sumamente doloroso, de lá nos tirou. Ainda que, no fundo, toda morte acarreta, indistintamente, os mesmos efeitos - a dor e um vácuo que se não preenche - essa, para nós, deixou outras marcas, indefinidas, que o tempo não conseguiu apagar e nem alterava meu pai, que não era chegado a lágrimas, derramou-as, aí as primeiras e únicas. Minha mãe, essa ficou quase alucinada, prostrando-se, no meio da rua, não querendo volver ao lugar da sua desgraça. E, no que me toca, a julgar pelo que sinto, fiquei um tanto diferente, incompleto, ao ir-se com ele um pedaço de mim. Mais de meio século é passado, e nunca pude me refazer da perda. Na verdade, não era mesmo um de nós meu irmão José; no verdor de seus treze anos! 

Tangidos pela desventura, fomos parar, em fins desse ano fatídico, 1931, no nº. 80 da Rua do Limoeiro, (hoje, Avenida Getúlio Vargas, onde vivi, até os doze anos, numa total inconsciência do mundo que me cercava. Ignorando tudo, nada sabia da vida. Uma coisa só me importava, e muito, brincar e nada mais. Todavia, era ouvindo histórias de trancoso que me sentia, realmente, feliz, ao ser arrebatado a regiões longínquas, deixando-me inteiramente descompromissado com o mundo dos sentidos. E não vacilava, às vezes, ao seu pagamento, feito em pães doces, furtados de nossa própria padaria!

Do Livro Resgatando Dívidas

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