sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Resgatando Dívidas - Um livro de Raimundo M. dos Santos

DICATÓRIA 
Este livrinho é dedicado à memória de meu pai, cuja grandeza, em vida, se ocultou.

RESGATANDO DIVIDAS
LIGEIRAS EXPLICAÇÕES

Não era propósito meu fazer o que fiz, e mover-me a tanto, confesso, não foi pelo natural impulso do querer, que nunca existiu, e, sim, por um outro, que me tornou imperativo, o inarredável sentimento da gratidão. O que ouvi de minha mãe, durante anos, deixou-me fascinado, e relegar ao esquecimento,o que de mais belo há, em vidas humanas, além de injusto, em si, em mim, é, de todo, inescusável. 

Com semelhante convicção é que me decidi ao sacrifício, ao não achar, por perto, quem o pudesse ou se dispusesse a aceitá-lo. Espero, porém, contar com a benevolência dos caros parentes, aos quais me dirijo, por não ter podido apresentar algo mais substancioso e melhor, conquanto muito o tentasse. Deficiências próprias e fatores alheatórios impediram-me de atingir o que, em tal caso, seria de se esperar. Antes de tudo, era tarefa para poeta ou escritor. Só eles, que sabem das coisas, as dizem com real proveito e elevação. E o responsável por estas notas, não sendo uma coisa nem outra, em momento algum alimentou a pretensão de vê-Ias cair no domínio público, conhecedor, que é, de suas limitações. 

Por seu reduzido alcance, são destinadas, como visível e de manifesta compreensão, aos descendentes e familiares de tão maravilhosos avós e tão excepcional sacerdote, numa pálida tentativa do resguardo de suas memórias, ao se fazerem dignos da admiração geral e, de modo específico, do afeto e veneração de seus consanguíneos. 

Com relação a parte da pesquisa, numerosos foram os empecidos, e quase nada os resultados, bem se vê. No entanto, razões maiores, e não lucros, foi o que tive em mente, na apresentação de tão insignificante trabalho. E, não por eles, evidentemente, mas, por elas, é que me sinto, desde logo, gratificado. Contudo, nada mais de concreto poderia mesmo ter acrescentado, pela absoluta falta de um instrumento hábil, ou de outra fonte qualquer de informação. Pessoas, datas, fatos e acontecimentos narrados, são frutos exclusivos dos depoimentos - seguros e coerentes, é bom frisar - de quem, dotado de uma memória vigorosa, foi parte integrante e visual de tudo que se conta, minha mãe. 

No que tange a deduções e juízos pessoais, que tirei e emiti, acerca dessas mesmas personagens, cada um julgue como melhor lhe pareça, que, eu, “cá do meu canto”, não o poderia ter feito, diferentemente. Pois, de tudo que vi, a não me deixar dúvidas, foi essa a impressão que me ficou. 

Por último, meu preito de profunda gratidão e de amor filial a esta mulher admirável, e minha mãe, Jardilina, possibilitando a pesquisa, e, mais que tudo, por me ter lançado no coração, desde o nascer, a semente da Fé. 

Recife, 12/86.
R.M. Santos 

O BARROCÃO

No Vale do Piancó, sertão médio da Paraíba, separando as atuais cidades de Boa Ventura e Itaporanga, *estende-se um baixio de terras férteis e dadivosas, cortadas e banhadas, periodicamente, pelo Rio Piancó, qual um novo Nilo, a fecundar-lhe as margens, permanentemente. É o sítio Barrocão, equidistante uns 12 e 15 kms, respectivamente, das mencionadas povoações. A esse tempo, pouco habitado, com suas casas de taipa afastadas, umas das outras, sem estradas, e desprovido de meios de comunicação eficientes com o mundo exterior. As veredas eram as únicas vias de acesso às vilas circundantes. 

Ali, em sua maioria, bem longe de toda civilização e, em estado quase semi-primitivo, nasceram, viveram e morreram meus antepassados. 

No começo da primeira década deste século, a chefia política do lugar repousava em mãos de meu avô materno, João Antônio dos Santos, quando lhe foi outorgada a Comenda de Tenente da Guarda Nacional. **Tal patente e distinção era, na verdade, um meio de que se valia a Corte Imperial para, de modo efetivo e não oneroso, entre outras atribuições, dar guarnecimento a nossas fronteiras internacionais e fazer sentir sua presença em regiões longínquas, pouco acessíveis à atuação do Poder Central. 

Verdadeiramente, porém, para tanto dela não precisava, e sua concessão em nada veio aumentar-lhe o prestígio, junto aos seus, nem lhe dar dimensão à autoridade. Já o detinha e já a exercia, de fato e de direito. Não em decorrência de atos solenes e formais, senão de outros, não escritos, apenas consentidos e, mais por isso, mais fortes e duradouros, porque gravados em corações. 

Sua retidão de caráter, honestidade a toda prova, elevado espírito de justiça e um altruísmo incomum, a que se acresciam singulares dotes de inteligência, é que o faziam credor das honrarias. Uma marca era, nele, significativa: a de advogado intransigente e protetor das viúvas desamparadas. Todavia, a prova maior de sua grandeza de coração e de amor ao próximo, ficou evidenciada, de modo sobejante, ao eclodir o flagelo de 1915. Seus celeiros ficaram vazios. Amparou e supriu os que lhe vieram bater à porta, e a quantos encontrou, pelo caminho, carentes de ajuda e socorro. E, se alguns, premidos pelas contingências da fome ou do êxodo, vinham oferecer-lhe bens a venda, quando os comprava, só o fazia pelo justo valor, conquanto ofertados por preço aquém do merecido. 

Praticamente, ele era tudo, em seu diminuto território. Não só por tão excepcionais predicados, como pela natural detenção daqueles poderes de época, inerentes ao munus político. Além de patrão, acumulava funções de juiz, de delegado, e até de ministro do culto cristão, como católico autêntico, que era. 

* A primeira chamava-se, então, São Boaventura; a segunda, Misericórdia. 
** A República a manteve, até sua extinção, por desprestígio, no Governo Hermes da Fonseca, já sob a denominação de Milícia Federa 

E como sua visão ia aonde as outras não chegavam, estava sempre na dianteira, abrindo espaços, determinado, sem se perder, qual um visionário pleno de obstinação. Desnecessário é dizer-se que, ali, nada de importante se operava, sem seu conhecimento. Tudo via, tudo ouvia e tudo decidia. E a consequência lógica, não podendo ser alterada, teria de ser uma só: todos os problemas morriam nele. 

Contudo, ainda que conservando toda essa autoridade, não a manejava ao modo dos coronéis e senhores de engenho. E nem o saberia fazer, que não era esse o seu feitio. Faltava-lhe gosto para o posto. Como errôneo seria pensar que a força dessa autoridade tivesse algum respaldo no mando da força. Era bem outro o seu suporte. Sempre fora perfeitamente capaz de prescindir de “cabras”, para seu serviço ou segurança pessoal. Nunca os teve. E, para quê, se jamais grangeou um só inimigo? Não se alimentando, por vontade própria, da sedução do poder, por índole é que não seria um déspota - coisa, no entanto, que só de si estava a depender. Ninguém o impedia, e as circunstâncias até que isso conspiravam. Já era um verdadeiro gigante, em terra de indiscutíveis pigmeus e, de tanto os avantajar, parecia ter-lhes perdido a similaridade. 

Entretanto, uma posição tão superior não o fazia distante dos seus e, tão pouco, os embaraçava, a cujo serviço fora posta. Muito ao contrário, atuava como autêntico aglutinador do bem comum, ainda que, a permeá-los, tão acentuado desnível. 

Por tantas razões, não havia como pudesse acariciar devaneios de prepotência. Forçosamente, teria de se reconstituir, no todo, porque, em mente tão desafeita a recuos, não iria caber, de certo, a ignomínia da traição. E que mais poderia advir, afora isso, se, em tão grande coração, fomentassem sonhos tão baixos e enganosos? 

Tal ilusão não lhe passou, sequer, pela cabeça, que não se deixou tentar, por muito saber o que queria. 

E, assim, entre a mesquinha veleidade do arbítrio e a elevada grandeza do altruísmo, não chegou a perder tempo na escolha. Fez-se servidor de seu povo, e conselheiro, porque, muito embora não tenha tido consciência da realidade, nascera, de fato, para guiá-lo a seu verdadeiro destino, preservando sua Fé e seus costumes. E o fez, sem mais nada considerar, anuindo, simplesmente. 

Conquanto, no meio da coletividade, fosse essa sua postura, dentro do lar ia além de toda conveniência, era um disciplinador atento. Cônscio de sua responsabilidade pessoal intransferível, não contemporizava com o erro e nem fazia vista grossa às menores falhas. Tudo sofria sua onipresença. Porém, mesmo encarando, com tal seriedade, essas obrigações, jamais perdeu o senso do equilíbrio. De há muito, acima delas, a todas ofuscando e governando, colocara o amor à família, traço maior e proeminente de sua individualidade. Mas, valeu a pena o sacrifício, pois, se a nenhum dos filhos transmitiu seu carisma ou o fulgor de sua inteligência, deixou a todos, não obstante, herança maior: a honradez, a inteireza de caráter e o amor ao trabalho. 

Tantas qualidades, num só homem, já o sobrelevariam a muitos, em qualquer parte. Mas, possuía uma outra, que parecia não ser encontrada em nenhum outro. Era homem de singular afirmação. Quando dizia uma coisa, nada e ninguém mais o demovia, era inútil tentá-to. Sua palavra era uma só: sim, sim; não, não. Não comportava alternativa. E tal proceder, já purgado da eiva da ostentação nenhum esforço lhe demandava, por seu estreitamento com a verdade. Era, só, fruto natural e solene dessa aliança, conquanto, para muitos, motivo de admiração e embaraço. Daria mesmo gosto de vê-lo, em momentos, assim! 

Meu filho! - diz minha mãe, em seu linguajar típico - nunca vi coisa igual, está para nascer outro, foi primeiro sem segundo! 

Releve-se todo o embevecimento filial, que, ainda assim, nada lhe foi tirado, o homem subsiste, incólume, pairando sobranceiro e intocável. 

Esse arroubamento, porém, não estancou no círculo familiar. Ultrapassou-o e se generalizou, no seio da comunhão social, mercê do que era, em pessoa, e do muito que representava para todo o grupo étnico. 

Mas, afeição é feito doença, quando não cede, aumenta. E, como, a cada dia, mais crescesse na estima e consideração dos seus, não previu e nem pode impedir o inevitável. Sem querer, ou perceber, quando se deu conta, já era tarde, e o fenômeno, irreversível. Passara a centrar, em sua vontade vigorosa, as vontades tênues e indefinidas de sua gente, absorvendo-as, assimilando-as, como se pacto de uma adesão consentida, ou, então, num quase milagre humano de transubstanciacão dos anseios coletivos. 

Já se vê, e ninguém o negará - era mesmo um predestinado. Mas, com tal dimensão, muito mais, - era um justo! 

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