A Origem – A Infância – A Primeira Escola
Severino Soares de Araújo, filho de Manuel Severino de Araújo (Dedé) e Maria Soares de Araújo, nasceu no sítio Cantinho no dia 26 de outubro de 1930.
O casal teve oito filhos sendo Severino, a quem chamaremos de Biu de Dedé, o primogênito. Em seguida vieram Vando, Lizete, Maria do Céu, João Neto (que morreu aos 13 anos de uma febre sem diagnóstico), Juraci, Francisco de Aquino e Maria das Graças.
A família era modesta, com poucos recursos, tirando a sobrevivência da agricultura que praticavam em seu sítio com três hectares de terra e, apenas, um hectare agriculturável.
Teve uma infância simples.
Aprendeu a lidar com a terra, assistido pelo pai.
Aos 12 anos foi trabalhar para um tio chamado Roseno, casado com a Tia Sinhá, que moravam na Serra do Gato, seis quilômetros distantes do sítio.
Lá havia uma pedra grande que formava uma caverna conhecida como fuma da onça. Na hora do almoço, buscavam abrigo do sol escaldante e se sentavam à sombra que a furna oferecia para descansar.
Ouviu, várias vezes, o Tio Roseno dizer:
- Biu, você é um menino-homem; é um menino com atitudes de gente grande.
Era um elogio que o encorajava mais a ajudar o pai na criação dos irmãos. Palavras ditas na hora certa valem mais do que ações.
Nunca teve tempo para brincar. Lembra-se de que ia a festas na cidade e, no retomo a casa, tirava os sapatos para economizar a sola.
Lembra-se, também, que a primeira escola foi lá no sítio Cantinho, onde havia um grupo escolar para as crianças da região. Era bom em matemática e por isso, teve que buscar algo maior indo estudar na escola do Professor Lindolfo Ramalho, professor conceituado que ministrou aulas a quase toda a população antiga de Itaporanga.
Faz, com nostalgia, um retrospecto até a infância dizendo:
- Dedé, meu pai, tocava fole de oito baixos; era uma maneira de ganhar um dinheirinho a mais. Nos sábados ele tocava na rua e no final do dia eu passava para pegar o dinheiro apurado e ia para o comércio para fazer a feira e trazer à casa para o consumo da semana.
Aos 14 anos percebeu o tamanho da família e a dificuldade para criá-la, sentindo a necessidade de ajudar o pai a realizar tal feito, juntamente com o irmão Vando.
A saída para tal façanha seria aumentar a área agriculturável, ação que seria impossível na própria propriedade, devido à grande quantidade de morros, serrotes e pedregulhos no restante do sítio.
Arrendaram terras vizinhas que pertenciam a Sinhozinho Farias, das quais hoje são os verdadeiros donos.
O seu pai, Dedé, tocava fole de oito baixos sem jamais ter tido aulas de música.
Era um autodidata.
Isto ajudava a trazer dinheiro para casa porque era muito requisitado para tocar bailes nos sítios da municipalidade. Mesmo sendo criança, Biu o acompanhou muitas vezes e começou a se interessar pelo instrumento que mal cabia em seus pequenos braços.
Dedé desconhecia a escala musical; por isso, não poderia ajudar muito dizendo o que era um dó ou um ré.
Severino (Biu) teve que aprender também sozinho, tirando um som aqui, outro acolá, mas, como dom é dom e não se compra, os seus dedos logo se familiarizaram com o teclado e ele dominou o instrumento que deixou de ser grande para ele, impulsionando-o a buscar teclados maiores.
Conta isso com as próprias palavras:
- Eu aproveitava as horas vagas e pegava o fole de meu pai e ficava arrestando; como era criança e, apesar do instrumento ser baixinho, eu era franzino e ficava catando as notas nos botões de uma música que eu já tinha conhecimento, procurando as notinhas para ver se mais tarde eu as tocaria. Procurava as mais fáceis, pois, quando a gente não sabe tudo é difícil e eu, sem meu pai a me ensinar, pois, ele não sabia as notas musicais; tocava de ouvido.
Sonhava ter um acordeão.
Era um sonho inquieto e constante; sabia que o tempo estava passando e que as oportunidades desapareceriam.
Explica assim este sonho:
- Aprendi a tocar o fole de oito baixos; tocava em piqueniques e já tocava bem, mas, o meu grande sonho era comprar um acordeão, pois, naquele tempo quem tocava sanfona era um sucesso, era admirado pela sociedade, era coisa rara na época. Mas cadê o recurso?
Sonhava em tocar aquela festa onde todos se deliciariam com a sua arte.
Muitos amigos e conhecidos também conheciam esta desenvoltura com teclados maiores e prometiam que iriam ajudar; eram promessas feitas sob os eflúvios do álcool, porém, quando a bebedeira passava, eles se esqueciam da promessa e esta amnésia levava consigo os dourados sonhos do jovem Biu.
Trabalhava com afinco na agricultura e os frutos foram surgindo.
Houve um fato pitoresco na vida de Biu. Quando tinha 18 anos solicitou uma colocação com o Dr. Pitanga que arranjou este emprego, porém, longe de casa. Era no cariri paraibano, na cidade de Salgadinho onde havia a construção da ferrovia que ligava Patos a Campina Grande; e lá se foi o nosso parente juntamente com Valdomiro e Afonso padeiro, com a cabeça cheia de sonhos por uma vida melhor.
Foram apresentados ao engenheiro responsável pela obra que os recebeu e os escalou para um trabalho grosseiro e pesado. Eles argumentaram que o Dr. Pitanga havia prometido um emprego mais leve, mais maneiro como apontadores ou fiscais, mas, o engenheiro foi peremptório e disse que seria pegar no pesado ou desistir; depois contemporizou e os colocou no serviço de topografia, deixando Afonso à disposição.
Algum tempo não muito depois, o serviço de topografia foi acabando e eles tiveram que ir se adaptando ao serviço pesado como encher caminhões de areia e de cal e ganhando muito pouco.
Tinha uma despesa de Cr$ 20,00 com o aluguel de uma casa para poder dormir e mais alguma despesa para alimentação.
O dono da casa era um aproveitador e sabendo da necessidade dos três amigos, comprava somente 02 quilos de carne por semana que se acabavam logo, ficando a alimentação à base de arroz e feijão no almoço e arroz e caldo de feijão no jantar. Era uma alimentação nada substanciosa para quem trabalhava no pesado. Dormiam com a barriga reclamando e roncando e se enganando com garapa de açúcar.
Trabalhou durante 8 meses nesta lida sofredora e, mesmo assim, conseguiu juntar algum dinheirinho para voltar ao torrão natal onde, com certeza, a necessidade seria menor e a dieta mais rica do que a da estrada de ferro para Campina.
Com este dinheiro comprou um terno de linho branco, para chegar bonito em Itaporanga e mostrar que veio de fora; ao chegar a casa, a sua mãe tinha mandado fazer e ampliar um retrato dela com o marido para colocar na sala da frente e como estava sem dinheiro, quem teve que arcar com esta despesa foi Biu, com o resto de dinheiro que sobrara da compra do temo.
Com as próprias palavras ele diz:
“Fiquei liso; foi o saldo dos oito meses de trabalho pesado, mas valeu!”
Aos 22 anos já tinha comprado três reses: duas vaquinhas e um garrote que saíram de seu suor lavrando o duro solo sob o impiedoso sol do sertão.
Eram frutos suados, curtidos, mas, valorizados porque cada gota de suor derramada equivalia às espigas de milho ou os cachos de grão de arroz que a terra devolve como premiação.
É o milagre da colheita quando a terra se torna generosa premiando aqueles que souberam cultivá-la no tempo e no momento devido.
Mente aquele que diz ser o sertão um lugar ingrato.
Mente aquele que o condena ou rejeita.
Mente, também, classificá-lo como inóspito.
O sertão precisa ser compreendido. Não pode ser comparado com ambientes que tem estações variadas.
As suas estações são bem definidas e mal aproveitadas; porém, a cultura secular que mistura religião e ciência faz o homem ser conformista e, posteriormente, indolente, aceitando a situação climática como um desígnio divino.
Dê-lhe condições e instrumentos condizentes para explorar o solo que o milagre surge de forma imediata, confirmando a informação de Pero Vaz de Caminha, enviada ao rei de Portugal “que aqui em se plantando tudo dá”.
A carta não foi escrita no meio ambiental do sul ou do sudeste, mas, em pleno ambiente nordestino onde a exuberância é uma verdade se lhe fizerem exaltação.
Biu de Dedé com os seus irmãos provaram, sobejamente, esta assertiva quando fizeram o solo do Cantinho, devida e exaustivamente explorado, devolver-lhes aquilo que buscaram: a sobrevivência com conforto, mas, sobretudo com a dignidade que esta familia passou e passa para todos nós, desde os tempos de antanho.
A coragem, devidamente balanceada, sempre leva ao sucesso. Não confundir, jamais, intempestividade com coragem.
A coragem é um sentimento de segurança que se tem longe do medo e perto da certeza da vitória. É sempre usada após uma análise criteriosa do que se quer fazer, evitando os percalços e atropelos que, invariavelmente, conduzem a resultados não desejados.
Já a intempestividade é a ação imediatista e impulsiva que é praticada sempre sem o critério do bom senso e da análise, conduzida pelo desejo de ver realizado, num átimo, aquilo que não se programou.
A chance de êxito existe, mas, é mínima. A chance de acerto é parcial, incompleta.
O desacerto, quase sempre, é a meta atingida e indesejada. Por impulsos, talvez hormonais, a impulsividade é quase uma característica da idade jovem ao passo que a análise, a medição, a paciência é uma situação inerente à idade mais avançada.
Baseado neste pensamento é que se pode explicar porque o êxito, normalmente, só chega depois dos quarenta anos, porque a coragem também está muito atrelada à vivência dos fatos.
Não significa dizer que não há jovens de sucesso e adultos desastrados, porém, a vitória só é feita após o amassamento do cimento que a impulsividade endurece com maior velocidade.
O balanceamento mente-corpo tem os neuro-hormônios como equilibradores.
Sabendo dosar há o êxito planejado.
A característica familiar de Biu sempre foi a mesma para todos os irmãos:
simplicidade,
altivez,
honestidade,
admiração conquistada,
distância da violência e da inimizade,
personalidade serena
referencial na sociedade.
Esta é a riqueza maior do que a riqueza material, que o sertão lhes deu.
O saber explorar a máxima de que “a união faz a força”. Jamais fraquejar diante das agruras e entender o sertão, não esperando que a fortuna caia dos céus.
Se não houvesse esta objetividade, talvez, alguns tivessem debandado para o lado errado ,da vida, para os caminhos que não devem ser trilhados; o apoio mútuo e fraterno lhes ensinou que valeria a pena arriscarem.
Valeu!
- Vando e eu só fizemos até o 4° ano primário, mas, colocamos os outros para estudar e atingir aquilo que não era possível para nós dois.
Os dois mais novos, De Aquino e Maria das Graças tiveram chances maiores e terminaram o curso superior, sendo ele médico anestesista e ela cirurgiã-dentista.
Lembro que, certa vez, De Aquino percebeu que a situação não estava bem e sugeriu que iria parar de estudar para diminuir as despesas que estavam grandes. Eu, argumentei que não parasse, que o sonho dele tinha que ser realizado nem que preciso fosse vender as terras para isto. Com a sua entrada para o Exército a situação melhorou e tudo caminhou a contento.
A valorização da família é um marco comum na vida destes dois irmãos que procuraram criá-la como um bloco bem sólido, havendo uma proteção mútua onde Biu foi “eleito” chefe, mentor, direcionador a tal ponto de prestarem muito respeito às palavras que saem de sua boca.
As irmãs se sentiam protegidas e acatavam sua opinião a respeito de namoros e namorados. Se um rapaz não estava na graça de Biu, ele aconselhava que a irmã não devesse continuar algo que daria dor de cabeça mais tarde. A aceitação da opinião era plena porque sabiam que, jamais, ele tomaria uma conduta que não fosse melhor para os irmãos.
Todos tinham uma obediência rígida às opiniões deste irmão mais velho que mantinha a famíliaa numa união perfeita. Nunca brigaram entre si, jamais discutiram, nem sequer um palavrão foi articulado contra o outro.
O pai era um tanto acomodado e nunca se reuniu com os filhos para dizer o que estava certo ou errado; Biu agradece ao Pai Invisível, Deus, a sabedoria que recebeu para ser o condutor de uma família numerosa onde deveriam acontecer inúmeros problemas, no entanto, a bondade divina foi tanta que todos se uniram em torno de uma meta e adquiriram a admiração e o respeito de toda uma sociedade, de toda a cidade de Itaporanga.
A felicidade é um bem coletivo
A felicidade não existe e nem é alcançada porque, se assim o fosse, haveria um lugar determinado onde ela se encontraria e lá se iria comprá-la ou pegá-la.
Ela está presente quando se tenta construí-la através de ações que levam, invariavelmente, ao sucesso. Ela não está onde há o insucesso, a incompetência, a desorganização e a indisciplina. Seria incoerência se pensar que o prejuízo provoque um estado de felicidade.
Ela é uma sensação plena de satisfação, de enlevo, de ascensão que dissolve a tristeza e o dissabor. É a sensação de que se atingiu o tudo, o píncaro, a meta programada ou, além disto.
A felicidade feita através de dores, doenças ou perdas é um arrebatamento fanático de se sublimar as desgraças como motivo de crescimento espiritual ou religioso, deixando o lógico pela dogmatização do incerto.
Não se pode confundir sensação de bem estar com felicidade.
Um paciente, com muita dor, sente bem-estar após aplicação de analgésicos; não significa que ele está feliz. Está melhor.
Poder-se-ia até afirmar que a felicidade é utópica, uma vez que ela não é perene. É momentânea ou passageira ou ocasional; dissipa-se com o primeiro dissabor, donde se conclui que quanto mais feliz maior a chance de melindres e: mais fugaz se torna ela.
É um bem coletivo porque é uma obrigação se dar condições de vida com qualidade e com dignidade a todos os povos, independente de etnias, religião, crença e partidarismo.
Felicidade individual é egoísmo, mas, sobretudo egocentrismo onde apenas um usufrui de algo que pertence a todos.
Nenhum nível social ou cultural compra a felicidade, mas, ela pode ser construída a partir dos sonhos de cada um e do empenho em realizá-los.
A felicidade é um contágio benfazejo que deveria estar sempre presente em forma de epidemia.
Há pessoas que se sentem bem com a felicidade alheia e invejam, de forma sadia, este estado de plenitude; são os desprendidos que entendem que ela é plena e tê-la não significa dividi-la com outrem e ficar com uma menor porção.
Há outras pessoas que se sentem mal e invejam, conscientemente, querendo este estado de forma exclusiva para si, sem ter feito o menor esforço para construí-lo, achando-se únicos merecedores e que os outros não têm este direito.
Querem exclusividade.
São uns usurpadores que esperam tomar aquilo que foi construído com seriedade.
Tê-la não é renunciar a um pedaço dela para dar a outrem, não é se despir do que é seu para cobrir outro santo.
Não se divide o indivisível.
Se ela fosse ou estivesse em forma de epidemia, todos os seres humanos seriam donos do mesmo cabedal, sem fracioná-lo, mas, aumentando a força de algo que se agiganta ao ser somado com os demais.
A felicidade pode ser construída a partir dos sonhos de cada um e do empenho em realizá-los.
O sonho é um embrião de um projeto.
Amadurece-se este sonho, tiram-se as arestas, medem-se os prováveis desacertos, divide-o, teoricamente, com outras pessoas, esperando-se críticas construtivas ou contrárias e, enfim., arma-se de coragem para realizá-lo envidando todos os esforços para o acontecimento desejado.
Quanto maior o empenho, maior a rapidez de ter a felicidade para usufruto; quanto mais preguiçosa e demorada for a realização mais longe fica o prazer de possuí-la.
A elasticidade dela varia de acordo com a multiplicidade do projeto.
Sonho amplo, felicidade maior.
Sonho pequeno, felicidade sem expressão. Portanto, cabe a cada um o tempo de tê-la para o próprio bem.
Quanto mais ambicioso for o sonho, maior o projeto e maior a satisfação da construção.
Realizar um sonho é perder uma ilusão, mas, ganhar uma certeza do bem realizado.
Aprendi isto tudo com esta família maravilhosa da qual Biu e Vando são os representantes maiores.
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