segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O “CABRA MACHO”: CANGAÇO, REPENTES E CORDEL NA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SERTANEJO.


Uma das características inerentes à construção do estereótipo cultural do sertanejo, vincula-se ao homem de certa forma rude que serve de moldura para o quadro da personalidade forte e espírito honroso que seriam inerentes ao nordestino. A esta construção estereotipada vinculam-se adjetivações como forte, resistente, intrépido, corajoso, orgulhoso e valente, consubstanciando no linguajar dos trópicos sertanejos na formação do dito “cabra macho”. [1]  

Construções imagéticas impregnadas de determinismos históricos e geográficos que se concretizaram na literatura do início do século XX, ligada aos aspectos de resistência humana ao meio seco, quente e árido.

[1] Visão negada pelo grande poeta Manuel Bandeira “Provinciano que nunca soube escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna a faca do pernambucano”.
Determinismo geográfico que prevaleceu por muito tempo na literatura científica ou de romance, onde podemos demarcar origens em Os Sertões de Euclides da Cunha.A herança desta construção de imagem do homem forte euclidiana pode ser anteriormente identificada na cultura popular que pode ir dos repentistas a Literatura de Cordel, onde há vasta produção de livretos e repentes sobre o tema do cangaço que tanto ajudou a proliferar e a popularizar esta visão do sertanejo e, em expansão, do nordestino, como se não houvesse diferenças culturais entre sertão e litoral, por exemplo. A figura do cangaceiro mitificou-se assim no imaginário de várias gerações como símbolo do “legítimo” espírito nordestino, nas descrições mais diversas e mais longínquas.

Construção histórica que passa por um processo de longa duração. Não é de hoje que se recorre a este “herói” popular e que às vezes se materializa de várias formas para atender a diversos interesses inclusive políticos. Ultrapassando inclusive as fronteiras nacionais e entrando em disputas geopolíticas mundiais, como ocorreu na Internacional Comunista, onde já se tentou utilizar o personagem como símbolo de resistência de guerrilha ao modelo capitalista na América Latina, como relata Eric Hobsbawn na sua famosa obra A era dos Extremos. 

Depois que tenentes rebeldes brasileiros como Luís Carlos Prestes passaram das caminhadas no sertão para o comunismo em fins da década de 1930, nenhum grupo esquerdista importante escolheu o caminho da guerrilha em outra parte (...) (Contudo, um tanto implausivelmente, a Internacional Comunista tentou apresentar sob essa luz Lampião, famosos bandido social brasileiro e herói de mil livrinhos de cordel). (HOBSBAWN, 1995, p. 85). 

As visões sobre o sertanejo se ampliam para a de Nordestino, caindo sempre na tentação da homogeneização em muitos casos. No seu romance A árvore que chora - sobre os migrantes nordestinos no Primeiro Ciclo da Borracha, na longínqua Amazônia – Vick Baum nos descreve o Cearense como os que, 

Crescem no lombo das montarias, firmando-se nos arreios com o dedo grande enganchado nos estribos. Para eles o amor, a honra, a vingança e a morte estão intimamente ligados. São pais tirânicos, amantes apaixonados e inimigos impiedosos. Orgulhosos, arrogantes, meigos e cruéis; e prendem-se à sua terra seca com um amor inexcedível, ardente e mudo” (BAUM , 1946, p.221 citada por GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. São Paulo, Marco Zero, 1994. 277 pp.)            


 O Sertão paraibano também tem contribuições significativas nesta “linhagem” de “Cabras machos”, mas precisamente em Misericórdia, atual Itaporanga, entre fins do século XIX e início do século XX, o “coronel” Zuza Lacerda veio a contribuir com essas visões. Misto de história e mito é difícil distinguir o homem - José Cavalcanti de Lacerda – citado nos relatórios de presidentes da Província como o alferes que acabou com o temido bando dos cangaceiros Viriatos que aterrorizavam Misericórdia (atual Itaporanga) em 1879, do mito Zuza Lacerda que chegou a proclamar sua República da Estrela nos confins do sertão paraibano desafiando o poder local.       
    
A PELEJA DE ZUZA LACERDA E ZÉ PELEGRINO 

Um destes episódios que ajudam na estereotipação do sertanejo itaporanguense encontra-se na quase lendária história da República da Estrela e do seu personagem mais conhecido, o “coronel” José Cavalcanti de Lacerda ou, como é mais conhecido, Zuza Lacerda.    
       
O “coronel” Zuza Lacerda teria declarado parte de Misericórdia – o então distrito de Boa Ventura e sua fazenda, Curral Velho, atuais cidades desmembradas e independentes politicamente de Itaporanga, como independentes da Paraíba e proclamado uma república a qual batizou de República da Estrela. Precisar as datas é complexo pela escassez de fontes confiáveis. Sabe-se que os fatos teriam ocorridos nos primeiros anos da República no início do século XX, provavelmente entre 1905 e 1910.

Esta dita proclamação, não possuindo cunho ideológico profundo, constituía-se em mais um dos vários episódios coronelísticos por disputa de poder local, na qual se alicerçava a estrutura política e social de Misericórdia no início do século XX, não fossem as proporções adquiridas.      
     
A própria descrição tradicional de Zuza Lacerda já nos dá a estereotipia do sertanejo típico, misturando homem e mito:

Figura de baixa estatura, alvo, de faces avermelhadas, rosto redondo, olhos miúdos e claros ligeiramente azulados. Não tendo uma educação aprimorada, possuía, contudo, o dom das boas maneiras, que lhe davam um toque de pessoa de fidalguia. Ágil nos movimentos do corpo, tinha ímpetos de acrobata. Poder-se-ia dizer que tinha a agilidade de um gato quando se fazia preciso usar de rapidez. (FREIRE, 1974, p. 47-48).     

Para entender como o velho Zuza Lacerda ganhou fama e prestígio, é importante entendermos o contexto do final do século XIX em Misericórdia.

Em fins do século XIX era freqüente no alto sertão paraibano a presença de cangaceiros, que saqueavam as cidades e atemorizavam a vida de seus moradores. Isso ocorria por vários aspectos sócio-culturais e econômicos, bem como naturais – como a seca que insidiam sobre a região – somados ao abandono do poder público em especial pelo pouco efetivo policial da província, que geralmente era mais escasso no alto sertão.  Somando-se esses vários fatores tínhamos um cenário propício a tensões sociais.

Em fins do período imperial de nossa história, por volta da década de 1870, um desses bandos aterrorizava as cidades de Misericórdia, Piancó, Pombal e cercanias. Vindos da localidade Esperança, no Ceará, quase fronteira com a Paraíba, tal bando ganhou fama e preocupava o presidente da província paraibana, assim como o interior de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. Eram os cangaceiros chefiados pelo bandoleiro Viriato, líder do bando conhecido como Viriatos. A notícia chegou aos ouvidos da Corte, no Rio de Janeiro, que recomendou ao governo local o combate aos bandidos sociais. Logo se organizou uma força de linha que se deslocou da capital para o sertão.

Em Misericórdia a frente da linha de combate destacou-se o então alferes, delegado do termo de Misericórdia, José Cavalcanti de Lacerda, que durante uma semana de caça aos bandidos culminou com as prisões e fim, até o último dos viriatos, merecendo citação no relatório do presidente da província da Paraíba em 1879.

Criminosos muitas vezes têm zombado da lei e das autoridades, e não raro a elas resisto à mão armada (...) tenho a satisfação de declarar que muitas vezes das autoridades policiais têm cumprido o seu dever e efetuado prisões importantes, folgando de mencionar entre elas os delegados de Piancó e de Cajazeiras e principalmente o delegado de Misericórdia, alferes José Cavalcanti de Lacerda que, com verdadeiro heroísmo, conseguiu, em uma luta prolongada e mortífera, desbaratar, no dia 21 de julho, a tristemente celebre quadrilha de assassinos e roubadores, denominada – viriatos – (grifo meu), flagelo do interior desta província e das zonas de Pernambuco. Rio Grande do Norte e Ceará, que com essa província se limitam. (“Segurança individual e de propriedade” IN.: R.P.P.Pb ULYSSES MACHADO PEREIRA VIANNA, 1879, p. 6-7).          

Coronel Zuza Lacerda
Anos depois, já alçado a mito a figura de Zuza Lacerda, assim descreveu o episódio no jornal “Correio da Paraíba” de 20 de junho de 1961, o padre Manoel Otaviano.A mortandade foi assombrosa.

A força perdeu pouca gente e os bandidos que escaparam da refrega fugiram em desordem, procurando matas, serras, vales, esconderijos. A força fracionou-se dando caça onde eles se encontrassem. Zuza, com a fama conquistada em árduas pelejas, assumiu o comando de uma parte da tropa com as honras de Alferes Volante. Mais de mês de caçada humana. Na fazenda Jenipapo, município de Conceição, Zuza com sua gente pisou na barriga do último Viriato, depois de todo um dia de forte tiroteio. (Cf. FREIRE, 1974, p. 49).   
 Após esta façanha, o coronel Zuza viu seu prestígio e fama crescerem e foi outorgado com uma patente de coronel da Guarda Nacional, firmou-se eleitoralmente como líder político em Misericórdia.

Anos depois, com a chegada da República partiu para uma cadeira na Assembléia legislativa, o seu poder de influência nas decisões políticas do sertão tinham aumentado tenazmente. Amigo íntimo do desembargador José Peregrino de Araújo, candidato ao governo do Estado, deu-lhe apoio naquela eleição. Naquela oportunidade deu-se um fato curioso nas eleições estaduais para o mandato 1901-1904, a oposição deu como eleita a sua chapa, composta por João Tavares, Antônio Massa e Flávio Maroja; e, por seu lado, as hostes oficiais elegeram José Peregrino. Ao mesmo tempo, dois presidentes(hoje governador) haviam sido empossados para governar a Paraíba. O coronel Zuza Lacerda deslocou o seu pessoal armado para auxiliar ao amigo, se preciso fosse à conquista do poder (Cf.: FREIRE, 1874, p. 50). Apesar de a facção oposicionista contar com o apoio do então presidente da província José Peregrino, que governaria sob forte pressão oposicionista através da imprensa da época, principalmente dos jornais “O Comércio” e “O Combate”. Tendo que aceitar a candidatura do senador Álvaro Machado, que lhe substituiria no poder.

No Sertão, acabara de chegar para residir em Misericórdia, o deputado Wenceslau Lopes, genro do presidente José Peregrino, o que feria o prestígio e o poder local do coronel Zuza Lacerda perante o governo. Pois o presidente José Peregrino preferia apoiar o genro ao velho amigo. Aos poucos o velho Zuza foi perdendo o seu poder local para o forasteiro Wenceslau Lopes, que se firmou como líder político na cidade, as queixas de Zuza Lacerda ao governo já não tinham mais respostas. Frustrado com a política recolheu-se a sua fazenda Curral Velho e, sem se conformar com a perda de poder local, armou-se convenientemente e anunciou a independência de Misericórdia. Estava fundada a República da Estrela no Distrito de Boa ventura, que se tornou seu feudo Republicano. Diz à tradição que o velho Zuza tratou logo de organizar seu ministério, entre os amigos mais íntimos. Havia os ministérios da fazenda, Justiça, Guerra e por via das dúvidas o da Marinha. Organizou a feira –  a feira era uma das formas de demonstrar o desenvolvimento de uma localidade naquele período – onde ninguém pagava impostos, e partiu para o combate na sede do município, onde se travou luta com o pessoal do deputado Wenceslau Lopes, que se seguiram a contras reações e tentativas de acabar com o movimento. Não conseguindo penetrar no reduto da República da Estrela e já no final do governo do seu sogro José Peregrino a frente do Estado, o deputado Weceslau simplesmente deixou em paz o reino de Zuza Lacerda. Este também aquietou-se, e com o seu rival indo embora do município, o velho Zuza, também com seu prestígio arranhado, via-se sem sentido mais a existência da República da Estrela.

Percebe-se que a república da Estrela caracterizou-se mais como um movimento reacionário do que ideológico que tão bem descreve o período da República Velha no sertão paraibano, com um velho “coronel” que não estava disposto a perder o poder local, caracterizando-se assim tal disputa como mantenedora da estrutura de poder na região. Podiam-se mudar os mandatários, mas a estrutura era sempre a mesma de chefe político local clientelista e assistencialista baseado muitas vezes no sistema de compadrinho e, as vezes, na força. Será que isso ainda existe na Misericórdia atual?

Lourival Inácio Fillho

1 comentários:

Olá, boa noite!

Interessante crônica/artigo, porém peca em não colocar a referência completa. Como identificar: “Segurança individual e de propriedade” IN.: R.P.P.Pb ULYSSES MACHADO PEREIRA VIANNA, 1879, p. 6-7).
Cf. FREIRE, 1974, p. 49).
Ficarei grata se a referência for esclarecida.
Socorro Lacerda de Lacerda

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