quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O CURRAL E A FAZENDA


“De fato existe um tom mais leve na palidez deste pessoal
Pares de olhos tão profundos que amargam as pessoas que fitar
Mas que bebem suas vidas, suas almas a altura que mandar (...)”
(Avôhai, Zé Ramalho).

Como se formou a cidade de Itaporanga? Em torno de que atividades econômicas seu centro urbano começou a se desenvolver? Como eram as primeiras casas?As respostas para tais perguntas nos remetem ao século XVIII do período colonial brasileiro, uma época em que a sociedade do sertão paraibano está se formando com características próprias em torno do abastecimento de carne para o litoral da produção de açúcar. É neste contexto longínquo que um homem com sua gente – Antônio Vilela de Carvalho – vai desbravar o oeste paraibano se estabelecendo as margens do rio Piancó, onde mais tarde seria fundada a vila de Misericórdia.

Apesar de termos encontrado pouco a cerca de Antônio Vilela, sabemos que o mesmo era um desbravador português e que teria vindo de Pombal, adquirindo as terras junto a uma das maiores empresas de posse de terras do Brasil colonial a Casa da Torre, de propriedade de fidalgos portugueses, os Garcias D’ávila, donos de vasta sesmaria que receberam em forma de doação, com sede na Bahia, às margens do rio São Francisco. Os Garcias D’ávilla possuíam terras que abrangiam uma vasta área, passando praticamente por todo o sertão nordestino, da baia ao Rio Grande do Norte. É, em um pedaço dessa gigantesca posse de terras, que Antônio Vilela se encontrava no século XVIII.

Procuraremos aqui traçar um contexto do que foram aqueles primeiros anos de povoação do que ficaria conhecido como “Misericórdia Velha”, dentro da constituição e formação do próprio sertão paraibano de meados do século XVIII.

A vida no pequeno vilarejo se estabeleceu junto com a criação do curral , pertencente à freguesia de Piancó, que havia sido fundada em 1739. Seus limites deveriam ser muito abrangentes, com vastas extensões de terras que iam de Piancó a leste, ao Ceará, a oeste, como nos faz crer o tipo de ocupação daquele período de nossa história. A vida no vilarejo não deveria se diferenciar das outras localidades sertanejas do mesmo período. Misericórdia Velha possuía hábitos e costumes provavelmente iguais aos que fizeram surgir distinção entre os habitantes do sertão e os do litoral. Pois os sertanejos eram mais voltados para a criação de gado e os do litoral para a agricultura, principalmente a canavieira, - a pecuária bovina era proibida por lei no litoral, para não prejudicar o plantio de cana-de-açúcar – com isso “a expressão – sertão – ficou restrita a zona onde era exercida em grande escala a indústria pecuária; e – sertanejo – só eram chamados àqueles que aí habitavam; assim como – matutos e brejeiros – eram os nomes dados aos habitantes das [zonas das] matas e brejos” (JOFFILY, 1997, p. 23).


O pequeno vilarejo, apesar do seu engenho de produção de melaço e rapadura; e de sua agricultura (milho, feijão e principalmente mandioca, alimento básico do período colonial) tinha seu maior sustento na criação bovina, que tanto era de subsistência como de comercialização para outros centros, dos quais Recife era o maior consumidor. Os rebanhos eram vendidos nas feiras de Campina Grande e Itabaiana, cidades que se desenvolveram dentro da dinâmica comercial, de onde eram repassados para os mercados da capital (atual João Pessoa) e de Recife, pelo dobro ou triplo do preço original. Eram grandes boiadas que se deslocavam ao som do aboio do vaqueiro guia por até cem léguas de distância. Atrás, seguiam os fura-moitas a pé, de calças arregaçadas e cacetetes nas mãos, levavam numa bruaca, bolsa de couro, a tiracolo, farinha, rapadura e carne assada. (Cf. MARIZ, 1910, p. 48).

A alimentação dos primeiros habitantes de Misericórdia deveria ser muito centrada no consumo de carne, devido à pecuária, assim como o resto do sertão paraibano. Como podemos perceber, o gado era o centro dos aspectos econômicos e culturais (bumba-meu-boi e o pastoril), presentes na vida dos sertanejos e na denominação de algumas cidades paraibanas como: Curral Velho, Santana dos Garrotes e Boi Velho (atual Ouro velho). (Cf. MELO, 1997, p.80).

Como as propriedades de terras tinham grandes extensões neste período, o gado pastava livremente, o que urgia a necessidade da figura do vaqueiro, que se tornaria estereótipo popular do sertanejo, junto à figura do cangaceiro.

O historiador Irineu Joffily nos dá uma descrição quase épica acerca do vaqueiro daquele período. “Sua destreza nos exercícios eqüestre não era tanto de maravilhar nas várzeas, nos campos abertos, como nas cerradas caatingas, no encalço de um novilho barbatão. Não havia obstáculo vencido pela rez bravia que não pudesse ser vencido pelo cavaleiro, o qual, mantendo-se em posição horizontal, com a cabeça apoiada no pescoço de seu amestrado cavalo de fábrica, e segurando por uma extremidade a aguilhada de três metros de comprimento, acabava sempre por lançá-la por terra”. (JOFFILY, 1977, P.237).

Sobre as características do vilarejo, Misericórdia, no seu primeiro momento, surgia próxima ao curral de Antônio Vilela. Podemos dar uma descrição mais precisa de como isso ocorria nos primeiros núcleos do sertão utilizando o historiador Celso Mariz:

“(...) as casas eram de taipa e tristemente baixas com portas a longo espaços (...). As cacimbas (...) um fosso largo, quadrangular, assediado de estacas vegetais, exceto de um lado onde morre numa haste estendida a guisa de cais. A dois palmos desta um obstáculo de madeira evita nas ocasiões normais o remechemento d’água pelas rezes saciadas e vadias que, entretanto, ai mesmo, vertem o líquido dos rins intumescidos e expelem as matérias fecais, tornando venenosos, imprestável, o paupérrimo abastecimento”. (MARIZ, 1910, pp. 47-48).

Como podemos perceber, o pequeno vilarejo se constituía de casas de taipas incluindo-se aí a do próprio Antônio Vilela e um abastecimento de água baseado na escavação de poços. As casas feitas de tijolos e pedra só surgiriam num segundo momento da colonização de Misericórdia, quando alguns moradores, já no século XIX, atravessariam o rio e, na margem esquerda do seu curso, fundariam a vila de Misericórdia, atual espacialidade geográfica urbana de Itaporanga...

Professor Lourival Inácio Filho, Ouro Preto do Oeste – Rondônia.

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