segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Uma página de nossa história contada por um dos seus próprios personagens

Agápio: 82 anos de vida e história
São 121 anos do fim da escravidão oficial, que deixou marcas profundas e vergonhosas na sociedade brasileira. A discriminação e o preconceito contra a pessoa negra são dois desses terríveis legados. No Brasil pós-escravatura, o racismo sempre foi uma prática velada e dissimulada, ou seja, não aparecia aos olhos públicos, mas Itaporanga quebrou essa regra e talvez seja a única cidade do país onde houve, de fato, uma segregação racial: uma nítida divisão social entre negros e brancos, notadamente entre as décadas de 50 e 60 do último século.

E ninguém melhor para contar essa história do que quem a vivenciou na própria pele. Aos 82 anos, completos no dia 19 de abril passado, o alfaiate e ex-secretário municipal Agápio Sabino de Sousa, mais conhecido por Agápio Sertão, é um dos remanescentes daquele tempo. “Naquela época, o preconceito racial e financeiro era muito grande aqui: as pessoas morenas sofriam muito e se fossem também pobres era pior ainda”, comenta seu Agápio, ao enfatizar que era notória a separação entre negros e brancos nas relações sociais, principalmente em casamentos, festas e passeio público; “a igreja era o único lugar onde todos se misturavam, mas logo na saída se separavam, cada um ia para o seu canto”.

Essa separação por cor de pele se evidenciava, principalmente, no centro da cidade, quando, nos finais de semana, a juventude saia para o passeio na Getúlio Vargas: um lado da avenida era ocupado pela turma branca e amarela; e, no outro, passeavam negros e pardos. “E nem um moreno podia ir para o lugar dos brancos, nem um branco poderia ir para o lado dos morenos”. 

Como opção de entretenimento para a juventude branca e rica da época, foi criado o Atlântida Esporte Clube em 1957. Mas o interessante dessa divisão étnica é que as pessoas negras, especialmente os jovens, não se intimidavam com os preconceitos e discriminações impostos pela sociedade, que era predominante negra e pobre, mas o poder econômico e político estava concentrado em mãos brancas. “Naquele tempo, as pessoas pobres e morenas tinham vergonha e orgulho próprio”, diz seu Agápio. Como não poderiam frequentar o Atlântida, os negros construíram seu próprio espaço festivo: o clube Independente nasceu pelas mãos de Assis Firmino e outros como reação a todo o preconceito a que estavam submetidos os jovens de pele escura. “E assim, por muito tempo, nós tínhamos aqui o clube dos brancos e o clube dos morenos, nem eles vinham para o nosso; nem nós frequentávamos o deles”, afirma Agápio, que foi um dos presidentes do Independente e recorda os grandes carnavais que lá se realizaram, até o fechamento definitivo do clube.

“Como a maioria do povo era moreno e pobre, o clube Independente recebia muita gente, principalmente nas festas carnavalescas que eram feitas com boas orquestras e muita animação”, recorda o alfaiate, que muitas vezes foi obrigado a barrar, na porta do clube, brancos atrevidos em busca de desordem e até pardos arrogantes, como um sargento de polícia que queria entrar à força no local mesmo sem ser associado.

Homem destemido
Parte da fama de homem valente, Agápio adquiriu na luta para manter o Independente disciplinado e em ordem. “Eu não me considero valente: nunca ofendi ninguém; e quando fiz alguma coisa foi somente para me defender ou defender alguém injustiçado”, responde. Moreno, sem muitos recursos financeiros e vivendo em um meio extremamente preconceituoso, ele teve, muitas vezes, que agir com coragem e ousadia para defender sua honra e combater injustiças contra os seus. Em um desses episódios, um irmão de Agápio foi preso injustificavelmente por um policial militar em um bar da cidade. Como o delegado estava viajando, Agápio Sertão foi até à casa do comandante do policiamento para esclarecer a história e pedir a soltura do irmão, mas não foi bem tratado pelo militar.

Revoltado, Agápio foi até o presídio, rendeu a guarda e libertou o irmão e mais dois amigos dele, presos no mesmo episódio. A partir dali começaram as perseguições policiais contra ele. Em uma das mais contundentes, no final da década de 50, Agápio foi cercado por seis militares na Avenida Getúlio Vargas, mas não se entregou: mesmo ferido gravemente, conseguiu balear dois policiais e os demais bateram em retirada. “Talvez esse tenha sido meu único erro”, diz com ares de arrependimento. Por esse fato, ele sentou-se no banco dos réus em 1970, mas foi absolvido por unanimidade a pedido do próprio promotor de Justiça.

Vida e família
Filho de pernambucanos naturais de Águas Belas, Agápio chegou em Itaporanga quando tinha sete anos, trazido pela família que fugia de um conflito no povoado alagoano de Anel. Seu pai, José Sabino de Sousa, que, em Alagoas, ganhou o apelido de Zé Sertão devido sua origem, era bancador de jogo e desentendeu-se com o chefe político do lugar: “o coronel queria humilhar os irmãos de meu pai, obrigando-os a trabalhar para ele de graça, e um dos meus tios foi assassinado, então meu pai fez umas besteiras por lá e viemos para cá por intermédio do delegado local, Juca Pedrosa, que era primo de Salomé e Josué Pedrosa; e aqui moramos por meses em baixo de uma oiticica na Lagoa do Gama e, depois, no Poço da Pedra, mas, com o tempo, passamos a viver na cidade”, narra.

A família também morou dois anos em Igaracy, onde Agápio aprendeu a ler: estudou apenas 18 meses com a professora Ecília Lopes Brasileiro, mas foi tempo suficiente para adquirir uma boa capacidade de leitura. E, já adulto, tomou gosto pelos livros: um hábito que continua até hoje e que o transformou em um homem esclarecido e capaz de compreender que só a Educação pode transformar uma sociedade, arrancando-lhe os preconceitos e a intolerância, características do subdesenvolvimento moral e educacional. “Onde existe Educação, a coisa muda muito”, opina. 

Alfaiataria e serviço público
Agápio Sertão tinha pouco mais de vinte anos quando trocou a roça pela alfaiataria. Com o dinheiro que adquiriu na venda de uma safra de algodão, aprendeu o ofício de costureiro e passou 58 anos na profissão, até 2004, quando sofreu um infarto. Durante seis décadas, Agápio vestiu centenas de homens. Calça, camisa e paletó eram suas especialidades, mas também costurou fardamento escolar e uniforme para bandas de música. “Naquele tempo, como não havia confecção, os alfaiates eram muito procurados e eram quem vestia a população”, informa, ao relembrar nomes da alfaiataria local a exemplo de Danúbio Fernandes e Luiz Benedito.

Em uma atividade paralela, atuou também no serviço público. Foi Fiscal Geral da Prefeitura na gestão Abraão Diniz, de 56 a 59. Também trabalhou como secretário municipal durante o governo interventor de Murilo Bernardo, ganhando notoriedade pela sua organização e zelo com a coisa pública. Entre as muitas ações que realizou, destaque para sua luta junto ao interventor para que a Prefeitura adquirisse (e adquiriu) o prédio onde hoje funciona a Câmara Municipal e o Banco do Brasil. No prédio onde hoje encontra-se a agência bancária, o secretário e o interventor instalaram a Biblioteca Municipal Paulo Correia, que, em uma gestão posterior, foi retirada do local para dar lugar ao banco. Um dos maiores equívocos contra a Educação de Itaporanga.

A história de vida de Agápio Sertão é vasta e riquíssima. Como alfaiate e servidor público deu sua contribuição ao município, tornando-se uma figura respeitada e popular. É pai de um casal de filhos (Agamenon e Edna Telma) nascidos de uma segunda relação conjugal, fora os filhos adotivos. Do seu primeiro casamento, não houve família. Atualmente, Agápio Sertão está com sua saúde fragilizada devido a um problema cardíaco, mas sente-se uma pessoa feliz e realizada.

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