Outro dia, numa beira de praia de João Pessoa, eu e outros privilegiados participávamos mudos do show de melodia, de ritmo, de musicalidade que Zé Badú e suas filhas Luciane, Larissa e Lizete produziam.
A certa altura da brincadeira Fátima Gaspar começou a cantar “eu quis fazer ... aí meu avô ... A maneira em que a harmonia chegava até nós, comecei a me transportar para o passado, para as ruas da minha infância, para a Itaporanga dos anos 50. De repente já não ouvia mais o som de violinos, de flautas, de violão, nem a voz da cantora. O que me chegava eram os acordes de um velho fole de 8 baixos. Era a música de Dedé do Cantinho.
Ele nasceu Manoel Severino Araújo lá pelos idos de 1908. Casou-se com Maria Soares Araújo, teve nove filhos, quem lhe deram 23 netos e 15 bisnetos. Foi condutor de malas de correspondência entre Misericórdia, Boa Ventura e Diamante. Durante 20 anos caminhou pelos mesmos caminhos transportando as historias de alegria, de tristeza, de dor e de morte. Era o estafeta que levava e que trazia as boas e más notícias, para lá e para cá, do mundo para uns tantos, de muitos para o mundo.
Boêmio convicto, mulherengo e amante de uma boa cachaça, Dedé conduzia consigo a musicalidade característica do Cantinho, pedaço de terra com o maior número de músicos por metro quadrado, área encravado num pé de serra, perto do Cristo e de Itaporanga, onde ele nasceu, viveu e ensinou o Biu, Vando e Diaquino, três dos seus filhos, que a música ainda é o maior lenitivo para o homem e que ninguém, absolutamente ninguém, fica indiferente a uma boa letra, a uma boa melodia, a um fole dengoso, que faz sorrir ou chorar, para a alegria e o encantamento de todos.
São João é o grande santo festeiro do Nordeste. Ele é homenageado por todos, no forró de pé de serra, nas latadas de chão batido e de pau a pique; pelas morenas faceiras, de vestido rendado; por damas e cavalheiros, da quadrilha marcada em francês que todos obedecem mesmo sem saber o que as palavras significam.
Anarrier ...
E o fole, o triângulo e a zabumba seguem marcando a dança com muita gente pelo salão. Pelo salão não. Com muita gente lotando o terreiro improvisado para as danças nas terras musicais do Cantinho.
Também em Itaporanga a festa era para São João. Numa noite de fogueira, no entanto, morreu cônego Manuel Firmino e a festa foi adiada. Transferiu-se, pois, a homenagem para São Pedro, como acontecesse até hoje. Mas no Cantinho não foi assim. Festa de cangica, , de pamonha, de milho verde assado na fogueira, só é bom na noite de São João, ainda mais ao som ritmado de Dedé, o Severino Araújo do sertão do Piancó, bom de letra, bom de música. Não correu o mundo como o outro, nem regeu a Orquestra Tabajara, a melhor do Brasil. Mas aquele de renome nacional não teve a gloria de nascer no Cantinho, o pedaço de terra mais musical do Brasil, nem tocou nas festas de sábado do cabaré de Rosa de Chico Nitão, nem nas latadas de pé de serra, nem no salões dos grafinos de nossa Itaporanga. Dedé não cruzou o Atlântico nem chegou perto do Pacifico. Mandou em seu lugar os filhos de Zé Badú e Mria José que, vez por outra, vão tocar para o deleite dos sobrinhos de Tio Sam.
Bom de copo, amante de uma boa cachaça, o pagamento que Dedé recebia era o olho cativante e agradecido de uma morena bonita e suada que há pouco rodopiava no salão, era o aplauso dos seus convivas e dos apaixonadas pela grandiosidade do seu fole de 8 baixos, o mesmo aplauso que me trás de volta para a realidade de agora e me põe de pé para saudar a alegria da música das meninas de Badú que estão encantando a todos nós com a musicalidade do Cantinho, com a harmonia que herdaram de Dedé.
“Eu quis fazer um som bonito e ritmado que fosse identificado com seu modo de tocar. Mas terminei fazendo um choro tão chorado, me lembrando do passado que não pode mais voltar. Ai meu avô ...” Toca Biu, Vando, Diaquino, toca Zé Badú, Gleidinho, Vanduir, Júnior, toca Luciane, Laryssa e Lizete, canta Fátima, ele merece ...
Bosco Gaspar
Paraibano de Itaporanga, nascido no Sítio Cantinho, daí DEDÉ DO CANTINHO, que é o Manoel Severino de Araújo. Ali, desde a infância aprendeu a tocar sozinho, era o foçe seu companheiro inseparável. Não conheceu latada que não reservasse lugar de honra para o seu fole. Não só nos sítios como nas cidades, serviu a gerações com os melodiosos acordes do seu oito-baixos. Feliz atravessou todo o caminho dos seus 75 anos, sempre montado no seu velho cavalo, levando alegria e encontrando a todos. Não há geração que não tenha dançado o forró, o xote ou o baião ao som dos oito-baixos do DEDÉ
Hoje, gravando, perpetua a sua imagem de homem simples, despojado de qualquer ambição material, enquanto homenageia uma legião de amigos e conterrâneos com essa mensagem de ARTE e AMOR: de arte vivida no diapasão do fole, de amor que o torna feliz fazendo os outros felizes.
José Otávio – Recife, maio de 83
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