Em um dos momentos mais felizes de sua vida no Amazonas, Claro Jorge de Carvalho recebe a cidadania de Boca do Acre |
O sítio Malhada Vermelha, hoje território de Pedra Branca, é o berço de um homem que muito já contribuiu com a saúde pública do país e muito ainda tem para oferecer: vidas continuarão sendo salvas pela ação médica de Claro Jorge de Carvalho, um dos vários filhos do agropecuarista Severino Clementino de Carvalho, famoso pelas farras e aventuras amorosas na Itaporanga de 40 anos atrás, embora nunca tenha se separado de sua esposa legítima, Mirinha Pacatonho. Um casamento que durou meio século e só foi desfeito pela morte.
Os livros oficiais talvez nunca registre, mas foi graças ao trabalho do Dr. Claro Jorge no interior amazônico, no final da década de 80, que a vacina para hepatite do tipo B foi introduzida no Brasil e, a partir de então, tornou-se disponível para todos os brasileiros, salvando milhares de vidas. Essa é uma longa história, tão vasta quanto as terras amazônicas, mas, por enquanto, vamos deixá-la de lado e ficarmos por aqui mesmo, nos nossos arredores.
Foi em Malhada Vermelha que Claro Jorge abriu os olhos para o mundo: experimentou pela primeira vez a vida e conheceu as primeiras letras. Uma das figuras mais vivas de sua memória é a professora Maria Licô Martins, levada ao sítio para ensinar à criançada pelo Dr. Paizinho, tio de Claro e então prefeito de Itaporanga, a quem o distrito de Pedra Branca pertencia à época.
Ele havia concluído a 4ª série quando, no final do ano, por lá, apareceu o Padre José de Assis Sinfrônio, em sua peregrinação anual em busca de ajuda para as obras da Igreja. Conheceu o menino e incentivou o pai dele a mandá-lo à cidade para a conclusão dos estudos. O problema é que o garoto não tinha onde ficar em Itaporanga, mas o empecilho logo foi sanado: Padre Zé deu morada a Claro e abriu as portas do Ginásio Diocesano para ele. “Eu relembro com muita satisfação e orgulho da minha professora do sítio Malhada Vermelha, onde tudo começou, todos os professores e professoras do Ginásio, que muito positivamente me influenciaram (Cleó Nogueira, Maria de Lourdes Leite, Telma Crizanto, Dora Chaves, José Cirilo e Heloísa Diniz) e de ter sido concluinte da primeira turma da escola criada por Padre Zé”, diz Dr. Claro, ao contar que tão logo concluiu o ensino ginasial foi selecionado, juntamente com um grupo de jovens regionais, para o Colégio Marista, em Recife.
A escola era um internato dirigida por educadores católicos e voltada para jovens vocacionados para a vida religiosa, mas Claro Jorge não planejava ser padre e trocou o vestibular de teologia pelo de medicina. Ficou entre os seis primeiros colocados na Universidade Federal de Pernambuco. Retornou a Itaporanga para dar a boa notícia ao pai e teve uma surpresa nada agradável: “quando eu lhe pedi a bênção, eis o que ele me disse: ‘a saudade que deixa é a mesma que leva, saiba que não está deixando nenhuma, e também não está levando nenhuma’, ele não queria que eu fosse estudar medicina em Recife por ser uma cidade distante, acreditava que não teria condições financeiras de me manter em um lugar onde, naquela época, só estudavam os filhos dos grandes fazendeiros do Nordeste”, justifica.
Mas as preocupações do pai não intimidaram o jovem. Rumou para Recife e lá, por coincidência, descobriu um neto de uma mulher que viveu durante muito tempo em taporanga e era proprietária de uma pensão na capital pernambucana. Nega de Aceno Alves foi dona de um prostíbulo na cidade e conhecia muito bem Severino Clementino, pai de Claro, e por isso mesmo relutou em aceitar o jovem, que terminou ficando. E lá teve o apoio de outros itaporanguenses, a exemplo do jornalista José Otávio e de Anita Conserva, além de Adalgisa Vieira e Luiz Menezes. Os irmãos maristas também foram importantes em sua vida na capital pernambucana.
Inicialmente, experimentou muitas dificuldades. A ajuda que a família mandava pelos Correios, único meio na época, não era muita e quando chegava o pagamento da pensão já estava atrasado. As coisas foram melhorando quando ele começou a trabalhar: primeiro em um banco e depois como professor de biologia. A partir de então, passou a bancar seu próprio sustento.
Apesar dos estudos em Recife, periodicamente vinha em Itaporanga e transformou-se em um grande ativista cultural: participou dos eventos universitários e fundou um grupo de teatro (Grutai). Antes já havia sido integrante da banda marcial do Ginásio, onde também lecionou por um ano. Era admirador da Maçonaria de Eddeus Feitosa; dos ensinamentos espíritas de Fernão Dias Sá, Zé Basílio e Antônio Bandeira; do Socialismo de Paulo Conserva.
Depois de formado na UFPE, Claro fez especialização pediátrica no Imip (Instituto Materno Infantil de Pernambuco), hoje uma referência nacional em Pediatria. Depois de formado, voltou a Itaporanga no final da década de 70 e as duas propostas iniciais de trabalho, uma em Emas e a outra em Princesa Isabel, não foram aceitas por influência de seu pai, e Dr. Claro viajou para Brasília, que foi a ponte para o seu maior desafio pessoal e profissional: o trabalho médico no interior do Estado do Amazonas.
O amigo dos velhinhos; o médico das crianças
Hoje, quase três décadas depois de ter pisado, pela primeira vez, o solo amazônico, Dr. Claro Jorge de Carvalho, o filho da Malhada Vermelha, é uma das figuras mais conhecidas do Amazonas. Atuou em 46 dos 62 municípios do Estado e salvou incontáveis vidas ao entregar-se de corpo e espírito à luta pela saúde de um povo até então abandonado à própria sorte nas ribeiras perdidas da grande floresta.
Foi graças ao Projeto Rondon, responsável pelo recrutamento de médicos para trabalhar na região Norte, cuja população sofria pela falta de assistência, que Claro chegou ao Amazonas. Foi em 81. Conheceu e integrou-se ao projeto meses depois de chegar a Brasília. “Lembro muito bem da nossa partida: éramos mais de 40 médicos em um avião búfalo, todos de pé, ao som do dobrado Dois Corações, que me fazia lembrar a banda de Padre Zé”, recorda.
Quando chegou ao Amazonas, Dr. Claro foi designado para trabalhar em duas cidades: Boca do Acre e Pauini, ao sul do Estado. Para ir de uma localidade a outra somente de barco ou avião devido à distância e a falta de estradas. Notícias do pai em Itaporanga só era possível graças a Lucileide Almdeia, então diretora da Telpa. “Lá as cidades não tinham energia todo o dia e as comunicações eram precárias”.
Hanseníase, malária, hepatite e tuberculose eram algumas de suas inimigas diárias na guerra para salvar crianças e gente de todas as idades.
Foi tão importante para a população que era tratado como um santo. Atuando como médico do governo estadual e perito do INSS, curou tanto quanto aposentou, e foi recompensado com títulos que passaram a integrar seu currículo: o médico das crianças; o amigo dos velhinhos.
Ganhou tanto prestígio popular que terminou caindo dentro da política partidária: foi, sem sucesso, candidato a vice-prefeito de Pauini em 88, mas desistiu da política porque “ser honesto é perigoso, e eu não abro mão de minha honestidade”. Mas exerceu cargos públicos: foi secretário municipal de saúde e diretor hospitalar. Os valiosos serviços prestados à população também lhe rendem um título de cidadania, este no município de Boca do Acre.
Doença misteriosa
Mas a verdadeira vocação de Claro Jorge é a medicina e um dos maiores desafios de sua atividade médica no Norte do país foi, em 1989, uma década depois de chegar ao Amazonas, diagnosticar e lutar pela cura de uma doença que matou dezenas de ribeirinhos do rio Purus, especialmente na cidade de Lábrea, e poderia ter matado ainda mais se não fosse o grito de alerta do Dr. Claro às autoridades políticas do Estado.
À época, ele era o único médico presente na região, uma vasta extensão de terra, talvez maior do que todo o sertão paraibano. Em sua atividade diária, começou a registrar óbitos repentinos, especialmente de jovens, mas não conseguia diagnosticar a doença que tanto e tão rápido estava matando a população regional.
Preocupado, ele viajou a Belém, capital do Pará e sede do Instituto Evandro Chagas, onde pretendia descobrir qual era a enfermidade que estava aterrorizando a população do Purus. E logo tomou conhecimento do que se tratava: o instituto já havia identificado a doença e o governo já tinha conhecimento do caso, mas até então nada estava fazendo, e tudo era mantido em segredo. Foi a Drª Gilberta Bensabath que revelou ao Dr. Claro Jorge o que poucos poderiam saber. “Ela se aproximou de mim e disse baixinho: ‘doutor, é a febre negra da Lábrea!’, uma doença que até hoje continua sem cura e que mata rapidamente”, revela.
Conforme Dr. Claro, a doença é uma combinação da hepatite B com um vírus chamado Delta. “É também conhecida como hepatite fulminante ou hepatite D”, esclarece o médico, que se reuniu com uma equipe de pesquisadores do instituto para buscar uma solução. E no encontro concluiu-se que a única maneira de controlar a doença era vacinar as pessoas do Purus contra a hepatite B, impossibilitando a combinação de vírus e o desenvolvimento da febre incurável.
Mas havia um problema: na época o único país que produzia a vacina era Cuba, e por conta dos embargos econômicos internacionais impostos à ilha de Fidel, era complicado importar o tratamento. Mas a pressão do itaporanguense sobre o governo estadual, e este sobre o Ministério da Saúde, foi exitosa: meses depois, a vacina chegou não apenas à região do Purus, mas a todo o país.
Outra importante ação do médico no Amazonas foi a idealização, em 2000, do Pai (Pronto Atendimento Itinerante), que são barcos equipados com estrutura técnica e profissionais para prestarem atendimento médico, odontológico e documental às populações ribeirinhas. Uma dessas embarcações recebe o nome Claro Jorge de Carvalho, uma homenagem ao seu mentor.
Um outro grande projeto do médico voltado à saúde da comunidade surgiu em 2002. São os centros de saúde, onde a assistência à população é especializada, conforme
a idade e a doença do paciente. O nome do Dr. Claro está gravado também em uma das unidades dessa obra de saúde pública.
O retorno a Itaporanga
No começo deste ano, Dr. Claro retornou às suas origens. Esta aqui a serviço de uma ONG (Organização não Governamental) belga, para elaborar um perfil sobre saúde e doença nesta região. O campo de pesquisa definido por ele são os municípios de Pedra Branca, Nova Olinda e Itaporanga, onde reside. O estudo já está sendo elaborado e é com esse trabalho que o médico pretende também fazer um doutorado na Bélgica.
Conforme Dr. Claro, com base na pesquisa que tem desenvolvido e nas observações que faz em sua atividade diária, a saúde pública regional, especialmente dos municípios onde atende, não é nada boa. “A assistência que é prestada nos hospitais e postos do Programa Saúde da Família deixa muito a desejar”, denuncia. Ele comenta que falta um projeto médico e administrativo para a saúde pública do Vale, e enquanto isso não for elaborado e posto em prática, as pessoas continuarão sendo obrigadas a deixar a região em busca de assistência em Patos, Campina Grande e João Pessoa. “Será que nós teremos que ressuscitar Pitanga e Balduino para resolver o problema da saúde?”, desabafa, referindo-se a dois dos maiores líderes políticos da história de Itaporanga.
Pubçicado no jornal Folha do Vale, de 27/11 a 17/12/2008
1 comentários:
Apesar de gostar de pesquisar na internet sobre a cidade de Itaporanga e seus valorosos filhos, somente hoje tive a satisfação de ler esta matéria sobre um conterrâneo amigo de infância Claro Jorge de Carvalho. Fiquei muito feliz e ao mesmo tempo bastante emocionado com a trajetória pessoal e profissional do renomado médico Dr. Claro Jorge. Coisa do destino ou incorporação do espírito do seu tio médico e benfeitor maior de nossa amada Itaporanga Dr. Balduíno de Carvalho, responsável por salvar milhares de vida de irmãos sertanejos, numa época sem hospitais e sem os equipamentos modernos disponibilizados hoje pela tecnologia. O então atendimento médico era de casa em casa, inclusive e principalmente em distantes áreas rurais sem estradas e com acesso apenas a cavalo. Dr. Balduíno era um sacerdote-médico o que hoje o é o Dr. Claro Jorge de Carvalho.
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