quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O projeto nº 22 que elevou a categoria de Vila a Freguesia de Misericórdia

Clique para ampliar
Misericórdia, hoje Itaporanga, viveu momentos de intranquilidade e muito reboliços em 1930. O prefeito do município era o médico José Gomes da Silva, homem de boa índole, pacífico, que veio a ser interventor da Paraíba, em meados da década de 40. Em Misericórdia morava, naquela época, um irmão do Coronel Zé Pereira, o comerciante Antônio Pereira, que se retirou para Princesa Isabel com a família. Quando ele ia sair de Misericórdia, o Dr. José Gomes o procurou para preveni-lo que não se atrevesse a ir sem segurança até Princesa, porque poderia ser molestado por liberais exaltados. Antônio Pereira já havia se entendido com o fazendeiro Crizanto Pereira, pedindo-lhe cobertura para fazer a travessia. 

Clique para ampliar
Zé Gomes, mesmo sendo liberal, preocupou-se com as garantias ao cidadão perrepista Antônio Pereira. Procurou Crizanto Pereira e recomendou a ele que escolhesse gente disposta, de sua confiança, para acompanhar o irmão de Zé Pereira. E assim foi. Ele deixou Itaporanga protegido por cinco homens valentes. Era 10 de março de 1930, dia da eleição para escolha de Presidente da República e Deputados. 

Em Nova Olinda, Antônio Pereira e seus acompanhantes encontraram José Joca, partidário de Zé Pereira, que tomou conta do viajante e família. José Joca estivera pela manhã na Vila de Sant’Ana dos Garrotes, com 20 homens, infundindo medo aos habitantes locais. A notícia foi dada em Misericórdia por Luizinho Fonseca, irmão de Zú Silvino, que tinha conduzido em um automóvel o farmacêutico José Rodrigues, para presidir uma secção eleitoral naquela vila. 

Misericórdia ficou assustada, com receio de ser atacada por bandos armados. O Dr. José Gomes convocou voluntários para defesa da cidade. Recrutou, aos poucos, cerca de 100 civis, com armas e munição que tinham, entregando a chefia dessa tropa improvisada ao valente Arsênio Alves. O destacamento da Polícia tinha apenas cinco soldados. Em pontos estratégicos abriram trincheiras e montaram piquetes. Para as bandas de Princesa as coisas esquentavam a cada dia. Em Misericórdia os defensores voluntários ficaram em alerta. A tensão durou três meses. Nada aconteceu, mas poderia advir um ataque. Na segunda quinzena de julho, a Vila de São Boaventura foi atacada. Dr. José Gomes mandou para lá 30 homens sob o comando de Arsênio Alves. Os invasores estavam sob as ordens de João Vicente, chefe do bando. Foram rechaçados. 

Foi Zé Silvino, de passagem por Piancó, quem trouxe para o Dr. José Américo, um recado de José Gomes pedindo ajuda, armas e munições. José Américo dirigia as ações contra Zé Pereira. O centro das operações estava em Piancó. Ele já havia mandado um automóvel a Misericórdia, com emissários para verificação das necessidades de José Gomes, mas o carro foi emboscado e o motorista ficou muito ferido. Não chegou lá. 

Em fins de julho de 1930 sabia-se da existência de grande número de rebeldes acampados na propriedade Riacho Verde, pertencente a Eneas Lopes, que se refugiou na cidade. Ele recebeu um bilhete. O bando armado exigia cinco contos de réis. Era muito dinheiro, à época. Diante da negativa, foi dado o aviso de que a propriedade seria queimada e o bando marcharia sobre Misericórdia. Estava dividido em três pelotões: um chefiado por Abílio, outro sob as ordens de João Paulino, e um terceiro à disposição de Antônio Pessoa de Arruda, vulgo “Pito”, comerciante na Vila de Santa Maria (atual Ibiara), partidário do Coronel Zé Pereira, mas muito identificado com a população de Misericórdia. João Paulino era a principal figura do bando. Fora Cabo da Polícia e desertou. 

Misericórdia em paz, em 1935, depois das refregas de 1930, recebendo visita pastoral. Na foto, em pé: Irineu Rodrigues, José Silvino da Fonseca (ZÚ Silvino), Antônio Vital Gomes, Walfredo de Souza, Josué Pedrosa, Otacílio Gomes da Silva, Gerson Norões e Gabriel Maia. Sentados, da mesma ordem: Tenente Napoleão (delegado), Dr. Antônio do Couto Cartaxo (juiz de direito, depois desembargador), Or. José Gomes da Silva, Oom Amaral (Bispo de Cajazeiras), Padre Luiz Gomes (Vigário local) e Lima Pacheco (dentista de Princesa Isabel). Quase todos eles estavam entre os defensores da cidade em 1930.
O grupo que atacou São Boaventura foi surpreendido por um contingente da Polícia, vindo de Sant’Ana dos Garrotes, sob o comando do Sargento Manoel Rafael. Quando a Polícia investiu, estavam entre os bandoleiros aprisionados, o Padre Lopes, vigário de Piancó, que se dirigira ao Sítio Riacho do Velho, onde os rebeldes se achavam, para tentar uma pacificação, e o fazendeiro Adauto Araújo, apanhado por eles quando vinha se refugiar na cidade. Quando os invasores marchassem sobre Misericórdia, os reféns iriam à frente, o que facilitaria o ingresso do bando na cidade, sem reação dos defensores. Padre Lopes e Adauto Araújo ficaram sob a guarda de Antônio Pessoa de Arruda, o Pito, que por ser da terra, deu fuga aos aprisionados, na ausência de João Paulino, que saíra para dar combate à Força Policial. 

O vigário chegou a Misericórdia, apavorado, no lombo de uma burra. Vinha mais cansado do que o animal que o transportou. E foi logo dizendo ao Dr. José Gomes que mandasse o povo sair para o mato, porque os cangaceiros viriam mesmo atacar a cidade. Adiantava o pároco: “eles dizem que são 420, mas eu acho que tem muito mais”.

Mulheres e crianças se retiraram para lugares distantes. A despeito do ataque surpreendente da Polícia, os revolucionários se reorganizaram para marchar sobre Misericórdia. Aproximaram-se e se estenderam ao longo do Riacho dos Pinhões, numa linha que ia do Altinho ao Cemitério, nos aceiros da cidade. 

Dr. José Gomes recebeu um bilhete assinado por um tal “Tenente Jiló”, que tinha mais ou menos os seguintes dizeres: “De qualquer jeito nós vamos entrar aí. Quer receber a gente com festa ou com bala?”. O portador tremia de medo, mas tinha que voltar com a resposta. José Gomes, tranquilo como sempre, pegou o mosquetão e mostrou ao mensageiro, dizendo-lhe: “Olhe a resposta!”. E fez o primeiro disparo para o alto. Isso acontecia no anoitecer de 29 de julho de 1930. 

Com o disparo do mosquetão, os cangaceiros responderam. Ficou ferido aí, levemente, Silvino Paulo, que estava no piquete do Dr. José Gomes. Zú Silvino correu para o seu piquete, no quintal de uma empresa de beneficiamento de algodão. Na coberta do prédio havia outro piquete, a cargo de Sinhô de Inácio. Chegaram outros conterrâneos. Ele se lembrava do irmão Luizinho, de Gabriel Maia (Gabila), Sinhozinho Farias e Alfredo Freire, um rapaz de Pernambuco que trabalhava para o Dr. José Gomes. Atiravam com velhas “Comblain” e mosquetões, armas pesadas, cujas descargas produziam um barulho enorme. Arsênio Alves tomou logo o Telégrafo e prendeu o telegrafista, mas o homem era amigo do Dr. José Gomes e se dispôs a colaborar transmitindo qualquer mensagem. Sigismundo Pinto feriu-se com o seu próprio rifle. Zé Gomes, médico, socorreu-o. 

Coronel José Pereira
O lado oeste de Itaporanga ficou aos cuidados das famílias Nitão e Bernardino, cujos integrantes obedeciam ao velho Chico Nitão. Politicamente, divergiam do Dr, José Gomes, nas querelas municipais, mas na hora de defender a cidade, eram todos por um e um por todos. Arsênio Alves mandou transmitir mensagem ao Capitão Arruda, em Piancó, comunicando-lhe que Misericórdia estava sendo atacada. O telegrafista já havia se antecipado. Difícil era o Capitão acreditar, porque o Telégrafo era suspeito. Na verdade, Arruda pensou que se tratava de alguma manobra para desviar a atenção da Polícia. 

Em 1930, o ronco de um avião amedrontava qualquer vivente, nas cidades e sítios do interior. O Governo do Estado conseguiu um teco-teco, que tinha: o nome “Garoto”. Recebera adaptações. O piloto era um italiano. Esse avião estava em Piancó, quartel general das tropas da Polícia, sob as ordens de José Américo. Ele teve que ir a João Pessoa e deu ao Capitão Manoel Arruda a seguinte ordem: “Não retire um soldado e não consinta o avião voar”. Logo que Zé Américo viajou, os bandos armados começaram a atacar as vilas situadas a alguma distância de Itaporanga. É Arruda que de Piancó conta: “De cá, a gente avistava a fumaça em Sant’Ana dos Garrotes, em Nova O linda e para o lado de Misericórdia”. Eram os cangaceiros queimando tudo, incendiando aqueles sítios. Era o grupo de João Paulino, marchando em direção a Misericórdia. 

Dr. José Gomes, então, pediu ao Capitão Arruda o avião e um contingente policial. Ele respondeu, pelo telégrafo, que não podia atender, porque tinha que cumprir as ordens do Dr. José Américo. Outro de pedido de socorro foi feito pelos irmãos Irineu e João Teódulo, de Sant’Ana dos Garrotes, onde os cangaceiros estavam destruindo tudo com fogo. Diante, porém, dos apelos dramáticos, despachou dois contingentes, que atacaram os bandoleiros pela retaguarda. Estes iam em busca de Misericórdia. Estavam à duas léguas apenas. O bando era numeroso. O contingente policial foi envolvido e não aguentou. Debandou em correria. Os soldados perderam os fuzis e até os chapéus. Com três dias, ainda aparecia soldado em Piancó. Isso acontecia nos últimos dias de julho de 1930. 

O Coronel Arruda havia prometido ao Dr. José Gomes, mandar o avião para Misericórdia. É Arruda quem diz: “Com pouco, o José Gomes me comunicou: - Estamos em pleno tiroteio. Então, eu disse para ele: - Vou mandar o avião agora mesmo”. O aviador chamava-se Perone. O mecânico era um francês de nomes Chales. Os dois estavam jogando pôquer. Arruda disse: “Perone, deixa isso aí e vai socorrer Misericórdia”. Perone partiu com três bombas chamadas “liberais”, umas bombas grandes, encarnadas, e um fuzil-metralhadora “belga” que tinha vindo do Governo de Minas Gerais. Para Charles, um fuzil com cinqüenta tiros. 

O “Garoto” voou logo para Misericórdia. Depois de uns oito tiros, o fuzil engasgou, em razão da corrente de ar contrária. Mas o efeito foi bom. Os cangaceiros suspenderam o tiroteio. A cidade já estava sitiada por eles. Então, o aviador, notando que não havia mais resistência, resolveu voar baixo. Foi o suficiente para que o pequeno avião recebesse três tiros numa asa. O Capitão Arruda ficou em situação difícil. Recebera ordens para não deixar o avião voar. O resultado foi que a aeronave esteve para soçobrar. O Perone manobrou para voltar e Arruda teve que arrancar cercas para fazer fogueiras ao lado do campo, a fim de que o “Garoto” pudesse aterrissar, à noite. Fez uma aterrissagem perfeita. Ao descer, Perone disse: “Olhe, só não fiz morrer. Não perdi o avião, mas deve estar todo baleado”. 

Após o ataque aéreo, os cangaceiros retrocederam. Por onde eles iam passando ateavam fogo em tudo. As chamas destruíram as fazendas: Altinho, Caravelas e Xique-Xique, O mini-bombardeio aéreo infundiu medo nos cangaceiros. Depois disso, no dia seguinte, chegava a Misericórdia, ao som de cornetas, uma tropa da Polícia sob o comando do valente Cabo Zé Bastos, mandado pelo Capitão Arruda. Entrou na cidade juntamente com lrineu Rodrigues, Peixoto Figueiredo, Clemente Teotônio e Antônio Eugênio, que se encontravam em Piancó e se incorporaram ao destacamento. 

Mesmo sem perdas de vidas, Misericórdia se viu em apuros, em 1930. Entre os conterrâneos que viveram uma noite de tensão para defender a cidade, estavam: José Gomes, João Silvino, Praxedes Pitanga, Chico Nitão, Pedro Martins, Caçula Pinto, Antônio Paulo, Antônio Severo, Valério Figueiredo, Polindoro Lemos, João Pereira, Antônio Vital, Zumba Dinamérico, José Alexandrino, Zeca Henriques, Antônio Pessoa de Arruda (o Pitó), era irmão de Pedro Pessoa de Arruda. Pitó combatia ao lado dos cangaceiros, e Pedro contra ele, defendendo Misericórdia. Na noite do tiroteio, a esposa de Pedro, irmã de Zú, dava à luz o filho Vandi. Ele corria do piquete para casa. Ficava nesse vai-e-vem. A mulher, Nôza, teve, para assisti-la no parto, Dona Salomé Pedrosa (Deinha), esposa de Josué Pedrosa, também irmão de Zé Silvino, e dona Mundinha, esposa dele. 
João Paulino que atacou Misericórdia tinha um grupo de 170 bandoleiros. 

(Terceiro Neto, Dorgival = Gente de ontem, histórias de sempre. - João Pessoa, Editora Itacoatiara, 1991) 


João Pessoa 
A Revolução de 1930, que pos fim à Primeira República, foi, para muitos historiadores, o movimento mais importante da história do Brasil do século XX. O maior partido de oposição ao partido republicano de Washington Luís era a Aliança Liberal. Era liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Dorneles Vargas. Mesmo sendo apoiado por muitos políticos que tinham sido influentes na Primeira República, como os ex-presidentes Epitácio Pessoa (paraibano) e Artur Bernardes, seu programa apresentava certo avanço progressista: jornada de oito horas, voto feminino, apoio às classes urbanas. 

Nas eleições de 1930, a Aliança Liberal perdeu, vencendo o candidato republicano Júlio Prestes. Mas, usando como pretexto o assassinato do aliancista João Pessoa por um simpatizante de Washington Luís, João Dantas, Getúlio Vargas e seus partidários organizaram um golpe que, em outubro de 1930, tirou Washington Luís do poder. Getúlio Vargas tomou posse do governo no dia 3 de novembro de 1930, data que ficou registrada como sendo o fim da Primeira República. Antes, põem, no dia 5 de outubro, o Presidente Washington Luís havia decretado “estado de sítio em todo território da República, até 31 de dezembro”. Desde meados de 1929 que a situação do então governador da Paraíba João Pessoa se tomara muito dificeis. Ao aceitar ser candidato a vice-presidente, sua situação complicou-se no plano federal: as represálias foram imediatas e incluíram a cobrança de vultosos empréstimos contraídos pela Paraíba. Ele também enfrentou o coronelismo paraibano (embora a ele estivesse ligado, inclusive por laços familiares) sofrendo forte oposição de coronéis do interior, sendo o principal deles o coronel Zé Pereira (de princesa Isabel) apoiados pelos paulistas, que os ajudaram com o envio de armas. 

Os dias que se seguiram ao assassinato de João Pessoa, ocorrido no dia 26 de julho de 1930 na cidade do Recife-PE, foram particularmente sangrentos naquele: facções rivais se digladiaram e muitos assassinatos foram cometidos a pretexto da revolução. 

Revista: "Itaporanga, 144 anos de história"

0 comentários:

Postar um comentário

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More